terça-feira, dezembro 14

'No one is answering back'

Há dias em que me sinto como o Calvin, um puto de seis anos, megalomano e mandão, que vive e funciona numa outra dimensão.
Estas conversas de cortesia que se estabelecem entre pessoas que são obrigadas a conviver não me interessam minimanente, irritam-me terrivelmente e exasperam-me visceralmente... Sofro de claustrofobia emocional!!! ;)

Coupling

"Não falarei das fadigas do meu labor" Jorge Luís Borges

Não sonho coisas palpaveis e tenho musgo nas mãos, verde e macio. Os meus braços são ramos...

domingo, dezembro 12


[Black and White]

Gift

O tédio

É impossível descrever o desconforto que me causa ver a densidade e a complexidade do ser humano reduzida a este vazio matemático. Esta formação catastrófica, estas jornadas de informação que me são impostas representam a antítese de toda a minha formação académica. Eu integro-me nas correntes humanísticas, nas correntes de pensamento antropológico que concebem o Homem como um ser delirante, imaginativo, manipulador de identidades pessoais e ultra pessoais. Concebo a antropologia como um projecto inacabado, sendo que a ideia de uma antropologia plural, estendida sobre o nosso pensamento quotidiano é em si mesmo um projecto no qual devemos investir.


O Tédio é um rosto multifacetado, cujos contornos não me são estranhos. Sinto-lhe o bafo quente e enrouquecido nestes dias de Inverno. Socorro-me de uma hipotese de sobrevivência sem saber de onde chegará.

Someday

Escrevo-te para colmatar o tédio destas tardes e a monotonia desta cidade.
Escrevo-te com uma avalanche de coisas mortas e vivas dentro de mim, escrevo-te de dentro de um mar azul de segredos, trevas e palavras ocultas.
Escrevo-te de dentro de um oceano de matérias mortas e vivas, tentando com palavras, sons e imagens diminuir a distância que vai de mim até ti. As minhas asas têm a cor do mar, existem vivas num azul transluzido.
Escrever-te-ei, num futuro feito dias, de dentro de uma amálgama de coisas, matérias e ruídos, que nem eu mesma conheço por inteiro.
Escrever-te-ei de dentro de um aquário de matérias vivas e mortas, repleto de peixes de cauda vermelha e sonhos intempestivos
Escrever-te-ei como se procurasse a tua ajuda para alcançar um entendimento que me sustente quando cair.

sexta-feira, dezembro 10


Black & White

sábado, novembro 13

You don't live here anymore

Talvez a principal diferença entre nós reside nas cidades que escolhemos amar. No nosso caso cidades rivais. Gostei de Lisboa desde o primeiro momento em que entrei nela. Quando a olhei do cimo do Castelo de São Jorge soube que Lisboa era a minha cidade, estendida sobre o meu silêncio, numa espécie de solicitude que nunca soube retribuir. Lisboa com os seus electricos, com os seus vendedores ambulantes, pedintes e desalojados, Lisboa tão cheia de contrastes e imperfeições é a cidade por onde caminho mesmo em sonhos.
Aceitou o meu coração partido e a minha alma faminta de ti, sem perguntas, sem hesitações. Ela vive em mim, independente de ti, das memórias que guardo do teu rosto moreno. A tua cidade cinzenta é só tua, estreita, secreta. Viana é o espaço que temos em comum e até mesmo esta cidade que nos abrigou se vai esquecendo de ti.
You don't live here anymore e escrevo o teu nome como se de um fantasma se tratasse. Desenho com ternura os contornos do teu nome e pergunto àquele lado de ti que sobrevive em mim há anos, se já me esqueceu. Pergunto insistentemente, sinuosamente ao lado mais obscuro do meu ser, porque é que te trago rente.

segunda-feira, novembro 1

Ela, tu e eu

«Ela é para mim aquela que está sempre à minha espera, sentada ou em pé com um livro nas mãos ou no colo, fazendo com que os minutos contem para alguma coisa. Encontro-a sempre assim, pensativa, olhando o horizonte. Chego então junto dela, apressado, como se tivesse desprendido um esforço sobrenatural para a alcançar a tempo de ela desistir e ir-se embora. Nunca o fez, nunca deixou de esperar. Pergunto-me se um dia ela não se irá cansar e não se irá embora cabisbaixa e triste porque eu cheguei tarde demais.»

Eu também sou esta 'ela' às vezes...

Felicidade

Já disse que não procuro a felicidade? Procuro sim momentos onde a infelicidade quotidiana fica suspensa, à espera, no vazio, adormecida, deixando um espaço em aberto para outras coisas poisarem. Sou triste por natureza, muitas vezes tenho o peso do mundo nos meus ombros, uma opressão que de todo não me parece normal. Parece-me inconcebível que os outros consigam viver, respirar sem as coisas que para mim são primordiais, as mesmas coisas que tantas e tantas vezes me oprimem e angustiam. Como é que conseguem viver sem olhar o céu e sentir um arrepio na espinha, sem escutar a voz do meu primo? Como conseguem viver sem a poesia que quero rente, sem a música do eugénio, sem o corpo de um texto?

Night fall all over

Sou marginal, vivo em retalhos, na margem, muitas e tantas vezes no limite da sanidade convencional.

Tenho uma imagem na minha memória: imagino a minha mão no rosto dele, os meus dedos testemunhando o reconhecimento da alma daquele rapaz, de quem há séculos eu não tenho noticias.

1 de Novembro

Olhei o espaço à minha volta e notei pequenas e grandes diferenças. Perguntei a mim mesma como podias tu descansar num lugar assim, tão branco, tão desprovido de vida, com tantos santos à tua volta. Pedi que me abençoasses, neste dia friorento e augustiante pedi que me abraçasses e confortasses por todos os anos da tua ausência. E avô, como seria a minha vida se tu tivesses nela, vigilante, amorosa? Como seria se tu não tivesses morrido à 18 anos, levando contigo a minha meninice?
O cemitério continua distante e frio, o catolicismo continua a inspirar-me temor e frustação.
Sei que vives para além das palavras ocas do padre...

Um hipotético Eu

Esta é uma resposta à clássica pergunta 'como és' do IRC


Bem, gosto das minhas mãos e dos meus olhos e em geral da minha personalidade problemática e delirante.
Não costumo roer as unhas, nem arrancar os cabelos qdo estou nervosa, mas sinto um frio no estômago nos momentos de maior ansiedade.
Gosto de conversar e discutir ideias em bares e cafés, imaginando que estou numa espécie de tertúlia.
Sou tendencialmente de esquerda e gostava de ser mais empenhada politicamente.
Sou preguiçosa e costumo sentir pena de mim própria nos momentos de maior fragilidade.
Tenho cabelos loiros que com o passar do tempo vão escurecendo.
Faço anos no dia 2 de Novembro.
Não sou uma grande e estonteante beleza, mas tb não sou excessivamente feia.
Sou por vezes neurótica.
Gosto de colocar desenhos e poemas nas paredes do meu quarto.
Gosto do Frank Sinatra.
Gosto de finais felizes e torço sempre para que a rapariga fique com o rapaz.
Não choro no cinema, nem me comovo com o pôr do Sol.
E o meu melhor amigo é gay.

terça-feira, outubro 26


Sleep

These are a few of my Favourite Things

Raindrops on roses and whiskers on kittens
Bright copper kettles and warm woolen mittens
Brown paper packages tied up with string
These are a few of my favourite things
Cream coloured ponies and crisp apple strudels
Doorbells and sleighbells and shnitzel with noodles
Wild geese that fly with the moon on their wings
These are a few of my favourite thingsWhen the bee stings
When the dog bites
When I'm feeling bad
I simply remember my favourite things
And then I don't feel so sad"

Friend

Sabes que nasci no dia dos mortos? No mês em que a tristeza tem uma espécie de essência redentora. O outono que novembro traz tem sobre mim um efeito apaziguador, terno. Nada te digo, porque quero o melhor para ti, mas sem a tua presença, sem a paz que a tua voz me dá, sinto-me perdida, vacilante. Tu eras, és o meu porto de abrigo. Como posso eu ser eu sem ti?

segunda-feira, outubro 25


Nice Shop

O que se aprende nas aulas de código!!!

Onde estás?

@@@@

«Estamos aqui para aprender a viver em sociedade ao volante»

Esta foi a melhor frase que até agora ouvi, no tédio que constitui as minhas aulas de código
A minha instrutora (será este o termo técnico para designar a pessoa que nos ensina a viver em sociedade ao volante?) tem mesmo um sentido de humor um tanto quanto mórbido.

Borboleta

Tu fazes parte de um mundo em que as perguntas não têm resposta, em que os complementos directos não existem, em que o verbo apenas existe na solicitude de um momento e o sujeito é um ser guiado apenas por uma acção. Desvendar o teu corpo implica trazer-te para o meu mundo, sabendo que tu nele não tens substância. Tu és esse ser que eu inventei e que alimento ao nível do meu imaginário.

quinta-feira, outubro 21


Suzanne Vega

Picasso

Chove lá fora...

Poucas coisas restam. Resta muito pouco. Sinto pouco interesse pela normalidade da vida. Só me restam os livros e os sonhos e o cinzento das pedras. Interessa-me o lirismo de algumas coisas, de algumas imagens repletas de vida ou de tristeza. A tristeza da fatalidade comove-me. Respiro, entro em mim e procuro qualquer coisa, o sono que perdi, a esperança que abandonei ou a teimosia que se foi. Restas-me tu, mas tu já não moras aqui e quando acordo já não te encontro ao meu lado. Conservo o teu cheiro, nada mais. Nada mais tenho, nada que queira ter, só um largo tempo à frente que não sei como ocupar. Estou sozinha, sou uma partícula de poeira, demasiado pequena para provocar tempestades. Não consigo dormir porque a chuva cai no telhado, produzindo o som de pequenos estrondos. Imagino um gato lá estendido, a morrer de frio. Percebo que sou eu que está a esmorecer lentamente. A terra absorve-me, dos meus braços começam a nascer ramos. Criei raízes na minha solidão. Estou só. E a chuva continua a cair lá fora.

Uma casa vazia de ti

Uma das primeiras coisas que noto é o vazio das paredes. Encontram-se despidas de memórias, de afectos. Movimento-me numa casa estranha, ouço ruídos que não conheço, que não identifico como parte do meu dia a dia. Depois vem o silêncio, da rua, das pessoas, das paredes. Um silêncio estranho, brusco. Medito, mas não encontro afectos. A minha casa é um corpo estranho e virgem.

Where are you, my friend?

O que fazer com o tempo que passa? O que fazer com o tempo que não passa? A intimidade que tenho com o D é quase impossível de transferir para outra pessoa. Posso medir o grau de intimidade a partir do conforto que existe entre nós. Já sabemos os nossos pequenos truques, não temos necessidade de agradar, ou fingir. Sabemos como cada um reage em determinadas situações.
Há uns tempos atrás enviou-me uma mensagem que ditava o seguinte: «Loira, um dos benefícios de me dar contigo é que, todos os dias, sou enriquecido com uma nova expressão de pasmo, admiração e até, por vezes, incredulidade.... Inatel, does it ring a bell???» Achei lindo. Fez-me sentir uma loira, estilo Bridget Jones, meio maluca. Sorrio, sinto-me leve, como se entre nós houvesse um entendimento meio completo que se expressa nestas coisas.
Ele é, de certa forma, o meu equilíbrio, a minha leveza feita de algodão branco e voluptuoso. É o outro lado do meu denso rosto. Hoje sinto, particularmente, falta da sua presença suave e humorada; sinto falta dos seus gracejos, da sua leveza, daquele ‘loira’ amigável, símbolo da nossa intimidade. Aposto que ainda dorme, um sono pesado, esquecido durante a noite para ser relembrado com os primeiros raios da manhã.

quarta-feira, outubro 20


Imagem enviada pela Catarina

News from Viana

D

Tenho mesmo pena que as coisas com o J não estejam a funcionar, porque de certa forma sinto que investiste na tua relação com ele, quando foste para aí.
Acabei que ouvir uma conversa interessante na TSF, com o escritor/tradutor Frederico Lourenço, que por sinal é gay. Comprei um livro dele há uns tempos atrás: Grécia Revisitada. Vou citá-lo: «A escrita (em comparação com a leitura) não tem esse lado de prazer a 100%» E tem toda a razão. Isto para calar todos aqueles pseudo-escritores que acham que escrever é muito divertido... Escrever quando é real é colocar um espelho sobre nós, o nosso passado, os nossos labirintos pessoais. Como gostava de ter o background literário que este homem tem.
Hoje ia sendo levada pelo vento e pela chuva. Cheguei a casa gelada e com os pés molhados. Entrei pela garagem para não sujar o chão do corredor da entrada. Descalcei-me, subi as escadas e quando tentei abrir a porta que dá para a cozinha, descobri o raio da porta fechada à chave. Vociferei, gritei, zanguei-me com deus e o diabo e prometi a mim mesma que nunca mais entrava pelo raio da garagem e que se lixasse o chão, o corredor e em último caso a minha mãe, porque foi por respeito a ela que cometi o erro de ser uma boa samaritana. Como vês continuo loira. Há coisas que não mudam, mesmo quando o mundo lá fora se transforma num lugar estranho e ameaçador.

Caramel

Suzanne Vega
It won't do
to dream of caramel,
to think of cinnamon
and long for you.
It won't do
to stir a deep desire,
to fan a hidden fire
that can never burn true.
I know your name,
I know your skin,
I know the way
these things begin;
But I don't know
how I would live with myself,
what I'd forgive of myselfif
you don't go.
So goodbye,
sweet appetite,
no single bitecould satisfy...
I know your name,
I know your skin,
I know the way
these things begin;
But I don't know
what I would give of myself,
how I would live with myself
if you don't go.
It won't do
to dream of caramel,
to think of cinnamon
and long for you.

Straight

A Letter

Dear Friend

Parece que a década de noventa ocorreu há muito tempo atrás. Há tanto tempo que nem sequer me consigo lembrar de quem eu era em 1996. Estou a ouvir os GNR, numa espécie de homenagem a ti. Sim, tens razão quando dizes que são as pequenas coisas que nos sustentam quando nada mais sobra.
Sei que daqui a uma hora vou para a cama ver a série que passa na 2, sei que amanhã vou comprar o jornal e tomar café, de manhã cedo. Vou à aula de condução, nem que seja para me recordar que não percebo nada daquilo e que tenho que começar a fazer os testes o quanto antes. Sei que vou buscar o computador e se estiver com o Sérgio, vou-me chatear com ele concerteza. Mas no meio dos sorrisos e das arreliações que o meu monótono dia a dia produz, não consigo deixar de pensar que tudo isto é tão pouco. E não me refiro às coisas que podemos, pela nossa vontade mudar, mas sim aquelas que estão para além de nós, ou melhor que se encontram rentes à nossa pele, à nossa personalidade. Eu sei que não arranjo emprego porque não quero ou não me empenho, que não vou para fora ou investo no meu futuro académico, porque sofro de preguiça crónica. Mas por que raio não me deixa a minha personalidade depressiva e a minha falta de auto estima acreditar que as coisas mudam, que existe algum rapaz aí à minha espera, algum rapaz para me ajudar a carregar os sacos do supermercado? É aí, Raquel, é aí que as coisas não vão mudar. Refiro-me a essa facilidade nos relacionamentos e enamoramentos que muitos têm, mas que eu não tenho. Não vou ser feliz, porque duvido que encontre alguém, que me arrebata da minha medíocre existência. E claro que ninguém arrebata ninguém, porque não existem príncipes encantados, e porque tudo isso são sonhos de criança. Mas começo a achar que sem amor, ou paixão ou enamoramento a vida é simplesmente um grande vazio, que os livros, os sonhos e a esperança vão preenchendo. Sei que temos problemas existenciais e afins similares e sei tb que a vida, a nossa vida é em mto fruto da nossa inércia e que isso tem que mudar, porque realmente nada cai do céu e tenho a vaga impressão que atingimos o chão. Há um mundo inteiro à nossa espera. Raquel, temos de sair de casa... Sei que nada do que te possa dizer vai colmatar a solidão ou a angústia e que as minhas palavras são vazias e pobres. Mas acredita que sei o que sentes, porque eu sinto o mesmo. E como tu mesmo disseste são as pequenas coisas que nos sustentam.

Mil Beijos

sábado, julho 24

Stupid Kids

A primeira vez que fui ao cinema tinha uns dez anos. Lembro-me que fui ver La Bamba e foi uma experiência reveladora, pois revelou-me entre outras coisas uma espécie de essência cinematográfica, que é a relação que o cinema estabelece entre realidade e ficção. Aos meus olhos infantis a morte foi algo de real, e não entendi a noção de filme baseado em factos verídicos. Persegui essa compreensão durante muito tempo, até que for fim convenci-me que aquela morte e aquelas pessoas não existiam naquele plano. Chegava a ter diálogos comigo mesma, numa tentativa de devolver a lógica que tinha perdido naquele espaço de transgressão. É claro que as minhas tias me tentaram explicar que tudo aquilo era ficção, que aquele actor provavelmente ia entrar noutros filmes, mas não foi suficiente. Tinha sentido a presença da morte, do destino, da inexorabilidade do destino e isso perturbava-me incrivelmente. Essas são as experiências que retemos na nossa memória. Já perdi a conta ao número de vezes que fui ao cinema, mas sempre que me perguntam qual foi o primeiro filme que vi no grande ecrã eu sei exactamente o que responder.
Ir ao cinema continua a ser uma experiência que me dá imenso prazer, pelas particularidades que envolve e sobretudo porque me faz sentir que por duas horas eu estou numa espécie de quinta dimensão, mergulhada visualmente e acusticamente num outro mundo. É uma espécie de simbiose que se estabelece entre nós e o filme, sobretudo quando estamos a ver um filme que nos transmite algo. Não vou ao cinema para comer pipocas, para namorar, para atirar piropos em cada cena quente, vou para mergulhar no escuro, para me afundar na cadeira, para rir e chorar, para sentir na pele a volúpia de certos diálogos, de certos movimentos, de certas cenas. Às vezes é uma experiência de puro prazer. O Kill Bill, Volume 2 é um exemplo dessa sensação.
Foi aos dez anos que entrei nesse mundo em que a imaginação se torna plástica, ganha movimentos, sons, uma história, uma galeria de personagens e frases que ficam marcadas na nossa memória. Agora vejo miúdos de quatro anos a irem ao cinema e fico a pensar que os tempos mudaram de facto. Nos tempos que correm temos o cinema infantil e o cinema para adultos, sendo que a divisão entre os dois é cada vez mais ténue. Vemos adultos a entrarem no espaço das crianças e infelizmente vemos também crianças a entrarem no universo dos adultos. E aqui qualquer coisa falha. Apetece-me gritar que o Homem Aranha embora seja um filme baseado num comic book, embora seja sobre uma personagem que a maioria das crianças identifica, e acha graça não é um filme para crianças, e muito menos para crianças de quatro e cinco anos. Choca-me ver pais a levarem estes miúdos a ver este filme, como se fossem ver o Nemo ou o Shrek. Creio não ser conservadorismo da minha parte, mas apenas bom senso. Uma criança não aguenta duas horas de um filme que não percebe, por muito que a mamã faça questão em o traduzir para que o filho e os outros a ouçam. O filme é violento no sentido em que é dinâmico do ponto de vista visual e sonoro. A imagem dos quatro tentáculos a saírem das costas do vilão é aterradora e deve provocar pesadelos em qualquer miúdo. O próprio ambiente do cinema é a meu ver intimidante. O som alto, a velocidade com que as cenas de acção decorrem, o escuro da sala, tudo isso aos olhos de uma criança de quatro anos é chocante.
E isto sem falar em como é desagradável para qualquer pessoa adulta que vá ver o filme e de repente se vê obrigada a aguentar com a histeria da criança, com a estupidez da mãe, e com o barulho e as constantes interrupções que daí resultam. Chego a pensar que provavelmente eu sou exigente de mais, e querer ver um filme que por sinal é muito bom, em silêncio, sossegada para me poder fundir nele, é concerteza um capricho da minha parte. Gostei realmente do Homem Aranha. Gostei das escolhas do realizador, assim como da densidade existencial das próprias personagens, gostei dos olhos do Tobey Maguire e do final escolhido. Mas pela primeira vez senti uma espécie de claustrofobia naquela sala barulhenta e teenager. E sai de lá a pensar que cada vez mais as pessoas vão ao cinema por ir, porque é uma forma de passar o tempo, sem fazerem um esforço para captar o filme na sua totalidade, para detectar nuances, para entrar dentro do filme. E isso entristece-me. Vi o filme como a minha atenção dispersa, e fiquei com a sensação de ter visto apenas metade do filme. Por isso resta-me perguntar: quando compro um bilhete para o cinema estou a comprar o quê? Tenho direito exactamente ao quê?

Semanas depois fui ver o Harry Potter, convencidíssima que aí sim ia apanhar com todos os miúdos das redondezas. No fim conclui que as crianças vão ver o filme porque querem, porque gostam, por acham piada ao Harry e aos amigos. Entram no filme, apreciam as particularidades. Claro que não resistem a trocar impressões com o amigo do lado, mas é o universo delas, é o espaço delas. Existem outros que vão mesmo só para chatear, revelando uma incrível falta de respeito e educação pelos outros, pelo interesse dos outros, pelo espaço dos outros, perseguindo aquilo que devem julgar ser a irreverência. Desde os tradicionais piropos em alta voz, passando pelo atirar de latas de Coca-Cola uns aos outros, atendendo telemóveis sem o mínimo pudor, tudo acontece naquele cinema. Aqui em Viana a silly season é o ano todo, sem interrupções. Nunca me senti tão insultada na minha individualidade como me senti nestas duas ocasiões. Mais uma e desisto de ir ao cinema, porque entre as crianças barulhentas e os adolescentes idiotas venha o diabo e escolha. Que cretinos são os miúdos de agora, tão cientes que a falta de educação, respeito e atenção não são punidos.

quarta-feira, julho 7

Always Look on the Bright Side of Life

Que os sinos cessem de tocar, que o tempo cesse de escutar os deuses, que os rios cessem de correr, que as crianças cessem de lançar papagaios de papel, pois a luz foi-se. Que os pássaros cessem de cantar, pois este ano não haverá migração. Que os movimentos cessem, que as vozes se calem, pois o abstraccionismo dos sentimentos já não é possível. O peso da vida exige manifestações concretas e palpáveis, exige algo mais profano que uma simples intenção. O medo que me visita é sinuoso, possuiu tentáculos, qual tal o velho Adamastor, que costumava invadir os meus sonhos de criança. Paralisa-me, com os seus tentáculos espreme as minhas entranhas, visceralmente. Quero cair numa nuvem de algodão. Quero cair nos braços divinos de Deus. Onde estavas tu, no momento em que o chão me faltou? Nesse segundo de náusea e nojo onde estavas tu? Não te perdoo o silêncio e a distância, pois as coisas não tinham que ser assim. Onde estavas tu, quando o mundo se tornou sonoro de mais? Onde estavas tu, no momento em que confessei a mim mesma o porquê das ausências, em que me despia de corpo e alma, para ser apenas uma miúda, com uma capa nova nos braços? E sabes, sabes, sabes???? Do silêncio, do animal que ruge dentro de mim, que sabes tu?

segunda-feira, julho 5

Os sujeitos da minha «escrita»

Sei que a minha escrita tem vários sujeitos, cujos nomes não revelo, mas hoje vivo com a certeza, que tu és em último caso, o sujeito da minha escrita, por excelência. Porque no fundo do meu corpo, quando o mundo se torna denso de mais para conseguir suporta-lo é sobre os teus braços que penso descansar, encostar a cabeça, pedir ao deus, em quem ambos acreditamos silêncio.

domingo, julho 4

Visceral

Qualquer viagem começa com uma pergunta. É pela ânsia de encontrar o que está para além do horizonte da nossa medíocre vista que a procura do conhecimento tende a começar. É um rumor suave no início, denso com a passagem do tempo que sentimos dentro de nós, uma espécie de intranquilidade que nos impele a percorrer o mundo de pernas para baixo. Tenho vivido continuamente com essa intranquilidade no espírito, com esse sentimento de antecipação de acontecimentos, normalmente catastróficos. A culpa é da modernidade, é deste mundo moderno feito de dúvidas e labirintos. Isso é o que me parece. E eu sou crente no modernismo. Mas não me interessa saber que nada existe, que essa coisa chamada realidade não existe, não me interessa saber que tudo é virtual, que entre o eu e o outro existe um espaço de distância que nunca será anulado. Existe a minha realidade. A literatura é então um exercício através do qual tento dar a minha realidade a mais alguém. Tento encurtar o espaço de distância que vai de mim até ao outro, como diz Sá Carneiro. Assim tudo é possível. Assim faz sentido dizer que a literatura transforma o impossível em potencialidade. Porque a questão de saber se é real, ou não, se é importante ou mera neurose, é uma questão secundária, porque o texto literário seja ele prosa ou poesia, é um texto resultante da plasticidade dessas neuroses, dessas dores de alma, desses conflitos existenciais É nesse inconsciente delirante que me afundo, que renasço para a vida. Em literatura tudo é possível, porque também tudo é permitido, porque em certo sentido podemos apresentar um rosto limpo, não perfeito, mas simplesmente o rosto que temos, por detrás das máscaras. Enquanto na vida sou necessariamente uma personagem, na escrita posso ser o narrador, um figurante, qualquer coisa de estranho. Para além da fidelidade necessária a mim mesma posso ser qualquer outra coisa. A minha liberdade criativa só presta contas a essa fidelidade, que autentica o meu trabalho, que o torna único. Porque a escrita tem de remontar a algum lado, tem de pertencer a alguma origem, sinto que a minha ainda tenta encontrar uma voz, a sua única voz possível.

...Open your eyes...

Encontro na minha escrita uma espécie de compromisso com a vida, sendo que os caminhos que traço pelas palavras ilustram os caminhos que tento percorrer no meu dia a dia. Aquilo que quero alcançar através das palavras, esse desvendar de fontes, esse regresso aos primeiros passos, esse encontro com a palavra exacta é exactamente aquilo que tento transpor para a minha vida. Essa fidelidade com um ponto de origem primevo onde encosto tantas e tantas vezes a minha memória do mundo é o que procuro conservar rente a mim. Vivo e penso que o que sustenta o meu universo uterino é a mais frágil e ténue linha. «Não feches a porta à chave, não rezes a deus, não te debruces sobre a janela», porque mesmo sem tu quereres, ou até mesmo suspeitares todo o teu mundo pode desmoronar. Vivo na mais primária, quem sabe superstição, com a qual alimento o meu tão confuso dia a dia.

No inicio era apenas um corpo

Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.

Eugénio de Andrade

Maça de Julho

«É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente»

«Nele a generosidade não era um investimento, era um sentimento activo apenas, um porque sim»

«O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima, sagitariamente. Ou num ininterrupto circuito zodiacal»

Helberto Helder

Li Bai again

«Meu pensamento, como as ondas do rio Wen, corre para o amigo que partiu para o Sul»

Gosto muito deste verso.

Li Bai

Um Copo de Vinho ao lado

Não há diferença entre passado e presente
Ambos conhecem tudo,
Eu, já velho, sei tão pouco!
Hoje sorrio ao olhar os cabelos brancos
Como geada na erva de Outono
Um suspiro, a mão no coração,
Eu velho, gasto e ressequido.
Jovens, que dizer?
Chegará o tempo da transmutação, sereis também os velhos da montanha.

Welcome Back


Shrek


Lembro-me que fui ver o Shrek, «volume 1» praticamente arrastada. Agora vou ver o «volume 2« com o meu Sérgio. Há filmes assim. Primeiro é uma aproximação tímida, para depois se transformar num afecto sólido, que queremos compartilhar com quem mais gostamos.

Yes & No or Black & White

Um homem vive porque sim, ama, encontra-se e perde-se porque sim. Porque é possível enganar a morte dessa forma. Porque sem a diferença, sem o toque que nos diferencia, quem seríamos nós? Quem somos nós agora? Sem o nosso rosto e paixões, quem seríamos nós? Eu procuro dar sentido e equilíbrio ao meu mundo, procuro uma paixão, procuro que o verso: ‘agora sei que vives num país breve’ faça sentido, faça todo o sentido. Pode ser uma procura insana, incompreensível, mas é a minha procura.

A ternura da infância


Calvin & Hobbs


Como gostaria tantas e tantas vezes ser um puto de seis anos, com um amigo imaginário, uns pais neuróticos, capaz de fazer as caretas mais incríveis, e ter os pensamentos mais bizarros. Trocaria os meus problemas existenciais pelas questões filosóficas e morais que atormentam o Calvin. Seria bom ter o Hobbs como amigo para pedir conselhos e para despejar a opressão que tantas e tantas vezes sinto presa no peito, como uma espécie de arsenal, um desabafo violento, doloroso, como se se tratasse de um ruminar lento e caprichoso que não cessa.

Evasão

Baby, it's cold outside

Hoje gostava de calar todas as vozes que se agitam à minha volta. Gostava de me deitar sobre a candura de qualquer coisa silenciosa. Sei que é impossível calar ou conter angustia, que se alimenta sofregamente do medo. Mas, ainda assim penso, tenho fé, quero acreditar que tu, tu não vais nunca morrer, nunca, ouviste?

sábado, julho 3

Sacode as Nuvens

Sacode as Nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as nuvens que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trepassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.


Sophia de Mello Breyner


Morreu Sophia de Mello Breyner. Quarenta minutos depois do início do jornal da tarde soube da morte de Sophia. E só me ocorreu pensar: pobre país o nosso, que tão poucas lágrimas verta por um dos seus que se foi.

sexta-feira, junho 25

Dois Poemas Ingleses

«Com que posso prender-te?
Ofereço-te ruas estreitas, presentes desesperados, a lua dos subúrbios miseráveis.
Ofereço-te a amargura de um homem que olhou durante muito e muito tempo para a lua solitária»

JLB

Borges

«Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fazemos de conta que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.»

«O nosso destino (…) não é assustador por ser irreal, é assustador por ser irreversível e de ferro. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo»
Obras Completas de JLB

Apoteose do vazio

«Não gosto de futebol mas sou patriota.» Rematou ela. Foi com esta frase que me calou. E eu fiquei com a resposta entalada na garganta, sem a conseguir libertar em argumentos terríveis, que deitassem por terra essa filiação patética à nação. Como explicar-lhe que a palavra patriotismo e afins me lembra a máxima do salazarismo, me recorda a tríade salazarista: deus, pátria e família? Como explicar-lhe que convivo mal com isso, como posso explicar-lhe que esse patriotismo de que se orgulha é para mim acéfalo e balofo? Também não gosto de futebol, mas ainda gosto menos de histerias colectivas. Quiçá não fui feita para sentir a felicidade efémera das vitórias desportivas. Não me deleito com a vacuidade dos discursos pré, durante e pós jogos de futebol. Não me reconheço nessa máxima anónima de pessoas que compram o cachecol com as cores da pátria, que decoram as janelas de suas casas com as cores berrantes da bandeira nacional.

«Não gosto de futebol, mas sou patriota. Por isso aprendo a linguagem futebolística, por isso torço com muita força para que Portugal ganhe, por isso defendo que o Figo até joga bem. Ele não marca golos, rapariga, ele faz os passes para que outros possam marcar, vês? Mas tu não percebes nada de nada. Também gosto de ver a entrada em campo, o momento em que entoam o hino. É tão bonito, não é? Ah, a ti nada te comove, até parece que queres que os espanhóis nos ganhem.» Continua ela. E blá, blá, blá…

O que me irrita nesta expressão é o facto de não dizer absolutamente nada. É uma daquelas expressões vazias, que vamos buscar ao baú das frases feitas, quando nos é útil. Desconstruir esta frase para alguém que não está interessado em ver o seu patriotismo reduzido a cinzas é uma tarefa contra-producente. Porque esta expressão supostamente encerra uma espécie de justificação ideológica, impossível de contra-argumentar. Porque acima de tudo apela a uma naturalização dos sentimentos e das ligações. Se não apoio a selecção, logo não apoio o meu país, não sou patriota e se não defendo as cores da minha bandeira, o que é que eu mereço? Ser excluída afectivamente dessa histeria colectiva, serem-me negados os benefícios da felicidade inócua e passageira de uma vitória. Ficar sozinha com o meu azedume intelectual, eis o meu castigo, eis o resultado de ter os pés assentes no chão. E deveria ralar-me com isso? Não, não devia. Mas quando esse nacionalismo entra pela minha casa adentro posso argumentar que somente os «intelectuais» não se entregam a ele, e que por isso é perfeitamente «normal», que a minha família se deixe embalar. Mas nem isso me consola. Primeiro porque é falso e segundo porque nós devíamos saber viver melhor estes momentos de competição entre equipas, sem que isso se traduzisse na palhaçada que vemos diariamente. Sem que isso exigisse dos comuns dos mortais frases toscas, raciocínios toscos, gestos toscos. São muitas as coisas que me transportam, mas o futebol não é seguramente uma delas e ainda que fosse tenho a certeza que não sucumbiria a essa overdose de frases sem sentido, de gesto sem sentido. Ser patriota é uma obrigação, à qual se entregam por prazer. Não interessa se é produtivo, combativo ou não. Bastará em último caso manifestar, entre cervejas, gritos e sacudidelas, essa «natural» fidelização nacional, para expressar um sentimento de pertença, baseado sabe-se lá no quê. Ocorre-me perguntar o que é que eles ajam que Portugal é. E sobretudo ocorre-me perguntar se realmente acham que existem motivos de orgulho. Por minha parte não sinto muito orgulho, nas situações em que tenho que clarificar a minha nacionalidade.

segunda-feira, junho 21

Depois da noite

«A escrita é uma amante caprichosa. O desejo era, em mim, um poço de água benta, incorruptivelmente casto. O desalento que sentia, o mal-estar que, por hábito, se apoderava de mim cumpria uma função pedagógica e o que outrora servia de matéria ficcional deixou de ter qualquer interesse. Cantei o amor que sentia por ti, da mesma que outros o fizeram antes de mim. Percorri os mesmos lugares comuns, fiz uso das mesmas palavras sem sentido, sintomas apenas de um sentimento de desejo amoroso, que se manifestava em metáforas. Há anos que desejo pedir-te desculpa por esses devaneios românticos, por esse excesso linguístico, por ter sucumbido a essa escrita excessiva, imbuída de uma sensualidade fácil e vulgar. Agora que o meu tempo é infinito, agora que a minha mente navega entre o passado e o presente, neste momento único em que apareces para colmatar o tédio que me invade, dou comigo a pensar no tempo que se foi, a usar a memória para romantizar o nosso encontro, a minha fuga e a tua despreocupação.»

sábado, junho 12

Um começo?

A escrita devia ter comigo um rosto excessivamente inteiro, brutal. No entanto é em fragmentos que ela se revela. Aterra no meu quotidiano aos bocados, aleatoriamente. Sem contemplações, sem recuos. O seu humor é oscilante e temperamental. Apenas existe. Mas a sua existência é, em mim, sobretudo caprichosa.
De uma forma convulsiva, de forma integral, com um rosto inteiro, devia perseguir-me, usurpar a minha respiração até ao momento em que eu, sem forças, me rendesse. Não o faz. A sua procura, que termina no começo de mim mesma, é especialmente tímida, vacilante. Os meus passos vagueiam no vazio. Entre fantasmas. Vagueiam entre aspirações e certezas, entre o peso do corpo e a leveza do sonho.
A escrita está em mim como um personagem tangente à minha existência. Mas trata-se de um personagem trémulo, sombreado, um esboço infantil apenas. Não sei por onde me leva. Nem sei aonde reside o seu poder de persuasão. O seu canto é um canto de sereia. É uma personagem que eu sigo com fé, às escuras, às avessas, sem uma grande opinião sobre ela.
Será necessário ter fé para escrever? Será necessário estar no meio de uma tempestade, para que as coisas se revelem com a violência da verdade?

Ternura

Old Man

Ele pensou várias vezes no que devia dizer, tantas vezes que por fim foi o dizer que desabou dentro dele, como uma tempestade. O desenvolvimento das coisas naturais como a linguagem, pensou ele então, fazia parte de um processo necessário. Porque não podia, sabendo como as coisas funcionavam calar-se. Simplesmente não aguentava o silêncio da frustração que ia progressivamente crescendo. Era uma energia que nem sequer compreendia, porque simplesmente não era traduzível em palavras, ou em gestos. Era imensa, dolorosa, e ele mastigava-a, sem se conseguir libertar. Ela existia e ele estava bem ciente disso. Existia dentro dele, no seu interior. Durante anos tentou encontrar uma linguagem capaz de verbalizar a densidade do mal-estar que o mundo lhe inspirava, as palavras certas para expressar os sentimentos que lhe enchiam a alma, desde dos temores à euforia. Não conseguia encontrar aquela dinâmica deambulatória entre os argumentos e os contra-argumentos, aquela simpática prontidão de resposta para a defesa das suas formas de ver o universo, visões do mundo que ele também não compreendia como podiam ser só suas, dada a certeza que possuía de que as coisas só podiam ser assim. Era impossível que fossem de outra forma e as ideias dos outros eram apenas versões distorcidas da mesma realidade. Uma questão de economia formava a relação que mantinha com os seus pensamentos. Ele sabia que era necessária a expressão verbal ou gestual das ideias que quotidianamente o invadiam. Sabia que essa era uma tarefa fundamental e que o conhecimento e a mestria que daí resultava constituíam um saber que valia a pena partilhar.
Tendo dedicado longos períodos de reflexão a essa actividade cedo chegou à conclusão que a expressão verbal ou artística dos seus pensamentos permitia ampliar e alargar o espaço da sua mente. Essa actividade permitia não só exercitar a mente para os segredos da retórica e do discurso como possibilitava sobretudo criar espaço para outras ideias entrarem e circularem no espaço mental e reflexivo do seu espirito. Sabia que existiam pensamentos que se fixavam em determinados pontos e que arrastavam consigo outros pensamentos para ele perniciosos. Liberta-los, exigia dele uma agudeza de acção e uma destreza na manutenção da disciplina à qual se tinha obrigado. Não deixava nada ao acaso e treinava a sua memória para prestar atenção somente àquilo que ele considerava indispensável. A sua mente era caracteristicamente elástica. Consoante os anos iam passando foi aperfeiçoando essa técnica. Era um senhor simpático, diziam, com um temperamento um tanto explosivo, que produzia longos e enfadonhos discursos sobre quase tudo. Dava a impressão que era um homem simples e austero, uma pessoa de hábitos, que não tinha grande apreço por mudanças, fossem quais fossem. Ele pensava que o mundo girava e girava e que era difícil manter os pés assentes no chão. Vivia de forma simples, sem luxos, ou excessos. Vivia como uma espécie de ermitã, na esperança de encontrar uma forma mágica que banisse da linguagem as palavras. Tinha por hábito dizer que pronunciar sons cansava deveras a garganta. Como seria mais fácil comunicar sem articular sons, sem sequer abrir a boca, comunicar sem sentir aquela absurda intenção de falar. Para ele a ideia de paraíso resumiasse a isso: a uma linguagem telepática. O que culminaria na supressão da distancia que ia dele ao outro.

Coisas que não interessam a ninguém

Não gosto do café muito doce, gosto dele levemente adocicado, quase amargo. Também não gosto de dizer bom dia às pessoas. Não gosto de ouvir música alto. Não gosto de um mundo a preto e branco.

António Ramos Rosa

«Amor, eu sei que vives num breve país»

«Estou vivo e escrevo Sol»

«O chão por onde ando é aparentemente tranquilo
mas eu ando nele como se tivesse minado
porque não ando só nele
mas através do tempo que não posso prever
e que no seu vazio ou nas suas figuras me arrepia me enerva ou
[me confunde]»

...Go home...

(…)
- É tarde, amanhã tenho de acordar cedo. A outra cerveja fica para a próxima. – Levanto-me, poiso a minha mão no seu ombro e adoptando um tom maternal digo-lhe para ir para casa a horas decentes. Ainda não perdi esse velho hábito, o hábito de me armar em mãe de quem já tem idade para ter juízo. Pego nas minhas coisas, ele diz-me que fica um pouco mais, e eu saio para o frio da noite, com a tristeza de quem já está habituada a este ritual, ao ritual de regressar a casa sozinha. Percorro as ruas, deixo a calçada, e penso em coisas existenciais, em relacionamentos, no passado, naquelas situações que ficaram por resolver por falta de entendimento cúmplice entre duas pessoas. Vou descendo a rua, lentamente, com as mãos escondidas dentro dos bolsos, sentindo que esta é, sem dúvida, a melhor altura para caminhar, para sentir os odores nocturnos da cidade, o regresso a casa de estranhos, o meu próprio regresso. Desço devagar, não consigo andar depressa, vou junto à estrada para evitar ser assaltada. Não consigo imaginar como é que o não andar no passeio pode evitar o assalto, mas sou em algumas coisas supersticiosa. A noite está clara, não vejo as estrelas, mas sinto a sua presença. Se estivesse na minha cidade olharia o céu e sentiria as pernas fraquejarem perante algo assim. Para esses momentos gosto de usar a expressão: senti que me faltava o chão debaixo dos pés. A minha cidade, o meu quarto, a minha casa, o meu pequeno mundo precário e intranquilo fica longe, às vezes perto, quando o quero perto, longe quando estou zangada com a vida.
Amanhã será um novo dia, o trabalho conjugado com a faculdade, os pequenos labores domésticos, o fazer a cama, o abrir a janela, o pôr a roupa a lavar, a estender, e secar, tudo isso que se repete semana a semana entrecortado por momentos em que a felicidade simples surge como algo tangível, suspenso no parapeito da janela, à espera que alguém a agarre. Só que é uma felicidade simples, pouco visível, esquecida, rouca, diluída no dia a dia. Pergunto-me constantemente aonde é que vou buscar a coragem para tentar agarrá-la, eu que sofro de vertigens, eu que tenho medo das alturas, até das alturas mais pequenas, como é que vou agarrá-la, ou como é que vou amar um homem alto sem recear que ele me deixe cair?

Rivera again

Diego Rivera

sexta-feira, junho 11

Imensidão de coisas

Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo. Tantas coisas a exigirem a nossa atenção. Há tantas coisas que agitam o mundo e ainda há tantas formas de ver e sentir essas tantas coisas que teimam em falar ao mesmo tempo. Exijo silêncio, enquanto tomo café e leio o jornal exijo o silêncio e a ignorância do outro, exijo o esforço dessa terceira pessoa invisível para não me perturbar, para me ignorar enquanto tomo café e leio o jornal.

Entendes?

Sim, eu entendi isso – respondeu ele.
E eu pensei que era tão simples se Tudo se pudesse resumir a essa palavra: entendimento. Se tudo tivesse o sabor dessa palavra. Se o mundo inteiro pertencesse ao universo das coisas com sentido, universalmente aceites, colectivamente partilhadas. Mas a vida não funcionava assim, era de uma individualidade exasperante. Sempre soube que estava nua e só face à imensidão do mundo, que eu era um átomo. Sempre soube que se retirasse todas as camadas que me envolviam, sobrava apenas um corpo, tragicamente, deslumbrantemente só. Ninguém podia morrer por mim, comigo ou em mim. Suponho que da mesma forma ninguém podia viver por mim ou em mim.

segunda-feira, junho 7

As minhas mãos

Finjo que as marcas que encontro são tuas. Finjo que em determinado momento requisitas-te este mesmo livro e marcaste os versos que mais gostas. Como se esta ilusão te trouxesse de volta.

Uso-te para construir a minha memória. Fazes parte do meu itinerário imaginado. Fiz de ti aquilo que nunca foste. Amar-te-ei? Quem sabe?

domingo, maio 30

Para uma antropologia dos processos identitários

«É o acesso à capacidade ‘dramática’ de delirar, que introduz a dimensão humana, identitária, cultural e civilizacional no conjunto dos primatas em que a biologia nos insere, dando origem ao ‘salto antropológico’ de que emerge o «homo sapiens demens» (Morin, 1973). (José Gabriel Pereira Bastos, 2000)

Sempre gostei desta frase. Parece-me que ao assumirmos a capacidade delirante dos sujeitos sociais, a capacidade destes em se construírem identitariamente estamos a honrar de certa forma o Homem, numa tentativa que reduzir a distância que vai do nós ao outro.

Um olhar sobre o passado

«Toda a leitura do passado traz a marca do tempo em que é produzida. Por muito grande que seja o esforço para que a hermenêutica não seja excessivamente presentista, por muito grande que seja o esforço para desideologizar, não é possível um olhar neutro, bacteriologicamente puro, absolutamente inocente sobre o passado.» in Introdução, História Comparada – Uma Visão Cronológica, Volume II, 1996, Circulo de Leitores.

sábado, maio 29


Dalí

News from Viana

Olá olá olá, várias vezes olá!!!

Pedes-me que te conte novidades, que te fale dos meus projectos, sempre pendentes, sempre adiados. Tenho evitado a solidão em frente ao computador, como se este representasse (é assim que se escreve ou será com um travessão?) uma página em branco que exige ser preenchida. Na verdade tenho andado adoentada, uma semana pré menstrual seguida de uma semana com menstruação real e física (não perguntes!!!) tem afectado o meu humor intensamente.
Novidades? Novidades? Uma amiga minha vai-se casar, a carta vou começar a tirar para o próximo mês e como hoje tenho um peso astronómico em cima da minha cabeça não consigo pensar em mais nada senão dormir, estender-me numa praia com o som do mar rente ao ouvido. Há livros que gostava de ler, coisas que queria pesquisar, assuntos que estão entravados na garganta, porque não encontro as palavras, aquela prontidão argumentativa para os debater.
Fala-me tu de ti, das tuas novidades, da tua gripe amorosa (gostaste?!), do teu trabalho... As novidades estão todas do teu lado.

Muitos beijos de uma rapariga rabugenta e de mau humor

Happy Thoughts

Sérgio com 10 meses

Parabéns Sérgio

O meu Sérgio comemora hoje os seus cinco anos.
As ruas secretas que criamos quando passeamos por Viana, ou os postais que enviamos quando estamos na net, ou o dar banho às bonecas, ou o ir à biblioteca constituem o código que move o nosso companheirismo. Ao Sérgio que vi nascer e crescer solto, amparado pelo nosso amor, pela nossa forma de fazer, dizer e manifestar, brincar e amar, só lhe posso desejar tudo de bom sabendo perfeitamente que a concretização desse desejo está além da minha vontade.
Quando tinha dois anos costumava perguntar-lhe 'como faz a vaquinha, Sérgio', ao que ele respondia muuuuuuuuuuuu... Manterei isso na memória: a expressão do rosto dele, o som da voz, autoritária quando quer alguma coisa, meiga quando quer um carinho.

domingo, maio 23

To P.

Descobri que o Amor era possível olhando o mundo da tua janela, ao som da tua voz. O amor entre uma rapariguinha de dezasseis anos e um homem de tez morena, com a letra mais incrível que conheci...

Um pouco de antropologia

Numa crónica data de 23 de Janeiro de 1993 (posteriormente publicada no livro Os Tempos que Correm, 1996), o antropólogo Miguel Vale de Almeida, proponha ao leitor, um pequeno exercício de terreno. Proponha ele a realização de um pequeno questionário, junto a um prédio da nossa escolha, composto apenas por duas perguntas, a saber, ‘quantas pessoas vivem no apartamento?’ e ‘que relações de parentesco têm entre si?’ Após a recolha dos dados, proponha, então o antropólogo, a realização de um pequeno relatório sobre a ‘Família’. O propósito do exercício seria a descoberta empírica dos vários tipos de organização familiar que actualmente coabitam com o modelo tradicional de família nuclear, constituída por pai, mãe e filhos, monogâmica, heterossexual, reprodutiva. A família da Igreja, da escola, dos anúncios de publicidade, do Estado, dos manuais de sociologia, não está sozinha, uma vez que coabita com todo um outro conjunto de uniões entre os seres humanos. Podemos, sem duvida dizer, que quando falamos na crise da família estamos a falar de um tipo particular de modelo de família. E está em crise, porquê? Grosso modo, porque a liberdade individual, as relações de afecto, os movimentos sociais, a liberdade sexual, a separação entre sexualidade e reprodução, tornou possível a emergência que outras formas de viver em família.
Podemos argumentar que a família nuclear está em crise devido à entrada da mulher no mundo do trabalho, devido aos movimentos feministas e ao movimento gay e lésbico; podemos argumentar também que a crise é fruto da modernidade ou da pós-modernidade que atravessamos. De todos os factores que podem estar na base destas mudanças, um deles parece-me basilar, a saber, a dimensão afectiva que está na base das relações que hoje em dia estabelecemos, quer como casais, quer como pais ou filhos. Não podemos negar que é o afecto que, cada vez mais, vai ditando os relacionamentos que mantemos. Nesse sentido, a família já não pode ser concebida como uma entidade económica, reprodutiva, uma vez que temos de ter linha de conta, que as relações de conjugalidade se estabelecem agora com base no princípio do ‘amor romântico’. O que verificamos é que a família, assim como a sexualidade, o casamento e as relações sociais, estão a sofrer um incrível processo de transformação, processo esse intimamente relacionado com a importância que agora é dada à dimensão afectiva e emocional inerente aos seres humanos.
Que o modelo tradicional, monogâmico, reprodutivo, heterossexual, seja continuamente objecto de referências e de laivos de saudosismo, é um facto que não podemos negar. Está em todo o lado, é objecto de discursos, de campanhas publicitárias, de referências quotidianas, é encarado, pensado e reproduzido como se representasse o suporte do bem-estar social, assente na ‘normalidade’ dos comportamentos. Assim como não podemos negar o favoritismo em termos de projecção mediática que este mesmo modelo é alvo. Mas a mãe solteira, o casal gay, os pais adoptivos, o casal de divorciados também são ‘famílias’, apesar de não serem objecto de retratos publicitários, apesar de não se verem retratados nas políticas do governo. A crise da família moderna está subjacente a todas estas transformações em torno da intimidade, transformações que possibilitam aos indivíduos um conhecimento aprofundado do corpo e da sua sexualidade, assim como permitem que esse mesmo conhecimento seja vivido em liberdade de escolha.
Ora, o que me assusta nos discursos em torno do que deve ser a família e afins é a incapacidade que demonstram em reconhecer essa mesma dimensão, em reconhecer a sexualidade como prazer, procura e descoberta e não como mero acto com finalidade reprodutora, em reconhecer a afectividade e o sentimento como os principais motores de união. Quando pensamos que estamos a fazer civilização verificamos que existem outros que teimam em nos manter encarcerados, nesses ideais absurdos e castradores da nossa própria liberdade de sentir, de viver a nossa sexualidade, as nossas escolhas, a nossa afectividade. Acho, e pelo menos falo por mim, que já não há pachorra para tanto provincianismo, para tanta ‘idiotice’, ignorância, conservadorismo, hipocrisia junta.

The inwardness of Good-bye is tragic

«A intimidade do adeus é trágica.
Como em tudo o que manifesta o tempo,
Amargo é saber que nem as estrelas teremos em comum.
Quando a tarde cai suave no meu pátio
Das tuas páginas ergue-se a manhã.
O teu Inverno será a sombra do meu Verão,
A tua luz a glória da tua sombra.
Persistimos juntos.
(…)»
Borges

To Grace

«Não quero riquezas, nem honrarias. Viajo pelo mundo. Só quero força na minha vida»
Li Bai

«Devemos defender sempre em nós, o que os outros acham ridículo em nós»
Roland Barthes

Rosto Precário

Escrevia Eugénio de Andrade a respeito d’Os Afluentes do Silêncio: O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! (…) A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem. (…) É da constatação do silêncio, da apetência do silêncio, da condenação ao silêncio que falam todos os meus afluentes, em prosa ou em verso.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, maio 21

Michel Tournier , O Rei dos Álamos

‘Trago-o no fundo de mim, como uma ferida, a esse ser ingénuo e meigo, um pouco míope, que tão facilmente deixa que abusem de si, que tão facilmente se recompõe de um desgosto’

‘Cá vou vivendo nu e solitário sem família e sem amigos (...) O meu clima moral habitual e uma tristeza de ébano, opaca e tenebrosa.’

quinta-feira, maio 20

O fantasma da insónia

Escreve Borges todos os caminhos levam à morte, perca-se.
Perco-me para não olhar a morte nos olhos, para escapar ao pesadelo de começar tudo outra vez, desde a mais tenra infância. Mas o que é que entendo por morte? É da morte dos membros de que falo? É a morte da esperança e do optimismo? É da tua morte? A morte é um fantasma que surge quando não consigo dormir, quando a cabeça não se ajusta às concavidades da almofada. Surge a morte nesses momentos, junto às sombras na parede, na palpitação do coração, que não se acostuma aos ruídos do escuro. Os meus sonhos são pequenos. Mas será que existem sonhos pequenos? Imagino-me livre de medos, capaz de largar os labirintos nos quais constantemente me perco. Parece-me que existe um conjunto de coisas que se colam a nós, que teimamos em manter perto, porque nos parece que a vida sem elas não faria sentido, como se elas sustentassem qualquer espécie de delírio, qualquer espécie de auto estima, ou de segurança. Mantemos perto, rente a nós, não abrindo canais para que a água corra sem barreiras para além das margens, aquilo tudo que nos parece que resume a nossa personalidade. Às quatro da manhã encontro-me sentada na secretária do meu quarto, junto à janela olhando para a noite lá fora. Não consigo dormir e chego à conclusão que as insónias são muito glamorosas nos livros mas que na vida real despertam a loucura dos membros. Tento ler, tendo ouvir música, mudo de posição, volto à cabeceira da cama, nada. O sono tarda em chegar. E o sono que chega não é tranquilo. Vem povoado de fantasmas e dos rostos que habitam o meu quotidiano, rostos transfigurados pela fadiga, pela sonolência.

Fala o M


A chuva é estreita quando cai nos teus ombros. Escuto na tua voz o som do mundo. Amo a terra e o teu rosto com a mesma dedicação. A chuva é estreita quando cai na minha janela. Atrás do cortinado algo se esconde. O quê? Pergunto o que é que o teu rosto esconde?
A chuva é estreita quando encolho os ombros. A chuva é estreita quando à noite puxo os cobertores até a cabeça. Estreita é a chuva quando ouço a voz do meu primo ecoando na minha memória. «Tita», «eta» tornam-se no som cândido das minhas recordações.


Ela fala de silêncio e silêncio na boca dela ganha uma conotação quase mítica, torrencialmente metafórica. O espaço silencioso que separa duas pessoas, aquele milésimo de distância que vai de mim ao outro, esse pequeno gargalo é uma das suas obsessões. Procura, então analiticamente superar o dilema, esse cessar de proximidade integral, fazendo da distância algo de inevitável. Digo analiticamente, querendo com isso dizer intelectualmente. Dessa forma retiro a afectividade, uma vez que emocionalmente a distância ontológica entre dois seres continua a ser algo que ela sente dolorosamente. Para tudo tenta encontrar um significado, que tanto pode ser racional como pode ser místico, religioso ou poético. Para ela, e fazendo parte do entendimento que ela tem do mundo, existe uma significação muitas vezes mística, intrínseca a todos os momentos. Com a escrita e fazendo uso das palavras mais próximas àquilo que ela quer exprimir, tenta uma aproximação ou uma reconciliação com o mundo social. Ela diz que o encontro com a escrita foi um encontro casual, simplesmente aconteceu. No entanto as palavras vivem na textura das suas mãos e o conhecimento que ela tem do mundo, o saber que ela expressa passa pela metamorfose dos textos. A alma dela encontrou a escrita, a sua invenção do mundo passa pelas palavras, sem dúvida. É um acolhimento caloroso, muitas vezes sofrido, mas vital. A escrita surge nela como uma forma de sublimação da tristeza.

O Sonho

Imagina que acabaste de ter um sonho. Imagina que sonhaste que eras uma borboleta. Agora imagina que acordas: tens a percepção que sonhaste. Ainda não sabes se acordaste, de facto, ou se continuas a dormir. Mas, na confusão do teu despertar eis que perguntas: quem sou eu? Um homem que acabou de ter um sonho em que era uma borboleta, ou uma borboleta que agora está a sonhar que é um homem? Vês como é frágil a linha que separa o oniríco da vigília? Será que essa linha existe, de todo? Perguntas qual é a importância de tudo isto? Perguntas, entre dentes, porque é que te falo de coisas que não consegues entender. Nem eu mesma sei. Não quero reduzir a minha complexidade à ilusão de achar que tenho alguma coisa para dizer, para te dizer. Falamos línguas diferentes. Eu falo em poesia e magia, de coisas que passam em mim, mas que não encontram eco em ti, porque não compreendes uma linguagem anterior à tua criação, porque não te interessa, porque no universo das coisas que nos dão forma eu sou água e tu és terra. Eu também te vou desiludir. Mas isso não tem importância, pelo menos para ti.

quarta-feira, maio 19


Van Gogh

Boticelli, O Nascimento de Venús

domingo, maio 16

Busque Amor novas artes, novo engenho

Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

Luís de Camões

Quiçá este será o meu último mail

Quiçá este será o meu último mail para ti...
Quem sabe se o tempo que aqui passei não será esquecido num tempo feito futuro, num futuro feito dias? Quem nos garante que não será remetido para o compartimento da nossa mente que lida com as memórias, com os afectos, com a nossa ligação aos espaços, aos tempos, aos amuos e lamentações recipocras?
Quem saberá, porque quem pode saber o que o futuro nos reserva? O futuro feito dias quero dizer. Esse futuro rente, que nos corre no sangue, suspenso pela adrenalina da antecipação... esse futuro próximo cujo cheiro conseguimos sentir, cuja linha do horizonte conseguimos antever, mas que está sempre, um, dois, três passos à nossa frente.
Adiantará dizer que, o que esse novo tempo me trouxer, não me interessa? Que me interessa apenas este canto tranquilo, onde me sento todos os dias, com o teu rosto à minha frente? Adiantará dizer que esta noite na minha rua choveu de rompante? Adiantará de alguma coisa as palavras que já estão gastas e cujo sentido anda perdido no tempo? Sobra-nos a amizade, é certo. Essa linguagem silenciosa e cúmplice.

Envio-te quiçá o meu último mail e despeço-me assim, porque é assim que me relaciono com o mundo... ‘Um beijo e um adeus, vai dando noticias’ não chega para mim, não com a densidade mental e existencial, com que deus ou o diabo me dotou. Por não saber o que o futuro me vai trazer, porque não saber se o futuro me levará aos espaços por onde habitas e te moves, uso o correio para te enviar o meu beijo, o meu adeus e o meu ‘vai dando noticias’. Porque também te podia dizer tanta coisa, e ainda assim tanta coisa ficaria por dizer, digo-te apenas que conservarei na memória o teu mau feitio, o teu humor sempre tão volúvel e as tuas palavras. Porque este pode ser o meu último mail, porque a despedida pode ser só um beijo dado de rompante, roçando a pele... envio-te quem sabe o meu último mail.

Older Women II

«Herdei do ramo feminino da minha família as linhas cheias do meu corpo, o conhecimento simples do amor e do tacto. Herdei também essa espécie de sapiência no viver, no amar. A mesma necessidade de aceitação, a mesma tolerância pelo lado da vida que se quer oculto. Escondi palavras ao longo da vida? É certo que sim. Tive sabedoria para me integrar completamente, para deixar que os outros se rissem da sua própria ignorância? Claro que não. A minha sensação de viver em suspenso foi permanente. Não tive um momento que resguardo e sempre ansiei por isso, por encostar o meu rosto a poesia do Eugénio.
É certo que perdi o rumo da morte, se a quisesse procurar não saberia por onde começar. Por isso fico à espera que ela me encontre, que ela esbarre em mim e me reconheça. Às vezes sinto-lhe o bafo, ou a presença. Às vezes parece que se esconde atrás dos cortinados. Fecho os olhos e fico à espera. Anseio por olhar nos olhos o que sempre antevi imerso nas sombras. Essa presença abafada, da qual nunca falamos, por medo de a despertar. Essa presença encostada ao ouvido e à imaginação. Tanto tempo perdido em coisas sem sentido, em coisas que estão fora e não dentro de nós. O que fazer para recompensar tudo o que não fiz? Todas as más decisões que tomei? Toda a falta de disciplina que durante toda a minha vida esteve presente? Se pudesse voltar, berrava mais, tenho a certeza.»

Happy Thoughts

Older Women I

«As manhãs de domingo já não sabem a café com leite. A semana já não começa com o cheiro do café e do jornal, com o som sufocado da rua. Os comboios já não têm o mesmo cheiro e as estações mudaram concerteza de lugar, porque se regressar à estação dos comboios da minha meninice tenho a certeza que não vou encontrar as linhas abandonadas, os bilhetes usados no chão, o sol a bater nas árvores, as casas sem ninguém, aquele barulho em suspenso, como se a estação vivesse na zona marginal da vila, ou da cidade ou da aldeia, num espaço perdido, desfocado, longínquo. Sei que não vou encontrar o barulho dos meus passos ou o som do meu riso de criança naquela plataforma abandonada. Sei que não, sei que não vou encontrar, porque estou velha e porque as coisas mudaram. Quem sabe se os comboios agora não andam sobre os carris sem fazerem barulho, sem expelirem fumo. Quiçá agora os comboios já não se chamam comboios. Quiçá têm um outro nome. Quiçá agora já nada é igual ao que foi quando eu era jovem. Se tivesse que viver de novo, não sei se iria sobreviver, não sei se teria resistência, ou paciência para lidar com tudo isso, com tudo o que envolve ter um corpo, com sangue a correr nas veias. Minguaria, encolheria até cessar de existir, porque não sei falar estas línguas, e porque a língua que eu sei falar ninguém entende.
Agora quero sobretudo regressar a casa, à casa que conheci quando criança, caminhar pelos corredores e voltar a ouvir a voz da minha avó, como sempre foi, chamar por mim. Ouvir o meu nome na sua voz, ver a boca dela mover-se até se formar nos lábios os sons do meu nome. Anseio agora por regressar ao silêncio do reencontro. Quero ver, enquanto caminho, a mobília perder o caruncho, os tapetes perderem o pó, as cores regressarem aos tecidos, os candeeiros brilhantes de novo. E eu regressando passo a passo ao mundo que deixei, à rua onde cresci, à fonte onde bebia água, onde cheguei a pedir a deus que me levasse os cravos que tinha nas minhas mãos de menina.
Se fechar os olhos e prestar atenção consigo ver a minha avó, sentada no sofá, com o seu xaile castanho sobre os joelhos. Se fechar bem, mesmo bem os olhos consigo realmente vê-la, com o seu sorriso de velha. Ouço a sua voz a perguntar por mim: ‘por onde é que andaste rapariga que há horas que ando à tua procura’. E vejo-me a mim mesma a correr pela casa, feliz, esvoaçando, gritando: ‘por aí, avozinha, por aí. Mas voltei, avozinha, voltei.’ E ela sem saber que as horas dela foram os meus anos e que a sua preocupação foi a minha angústia. Dar-lhe-ei um beijo na cara enrugada, o beijo que guardo há anos na algibeira das calças. Terá o meu beijo o gosto das viagens que fiz, dos caminhos que percorri, das pessoas que amei, das lágrimas que sempre surgiam do nada?
Penso que não reconheço o mundo, faço um esforço mas não o reconheço. Perdi a conta ao número de vezes que quis voltar para casa, perdi a conta ao número de vezes que senti a nostalgia presa à carne, como uma segunda pele, áspera, pigmentada. ‘O mundo está a mudar’, disse-o várias vezes. Sinto-o na água, sinto-o nos ossos, sinto-o no corpo. O mundo está de facto a mudar. Mas o meu tempo aqui já terminou ou terminará em breve e eu farei a minha última viagem. Vou ao teu encontro avó, entrando nas brumas vou encontrar-te sentada à minha espera. Estou velha, mas quando penso em ti regresso ao meu corpo de menina. ‘Avó’ na voz de uma velha o que é que significa? Fará sentido? Terei eu direito a ter uma avó, ainda que seja uma avó imaginada, retalhada pela minha memória? Tu, que eras o meu porto de abrigo, estreita-me nos teus braços, dá-me um rebuçado para eu voltar a sorrir. Faz-me acreditar que o mundo é qualquer coisa de especial.»

sábado, maio 15

Helberto Helder

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado.
Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima –
Eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.

Keep your eyes open

\«(.)(.)»/

Ontem passei à tua varanda 2 vezes e suspirei.
2 vezes passei à tua varanda e 2 vezes suspirei.
Onde estavam os teus longos cabelos de oiro que outrora entrançavas e da varanda
pendias, esses cabelos que eu trepava enquanto tu gemias, sorrias?...

De um e-mail do David

Eternidade

Elfo

sexta-feira, maio 14

O teu rosto no meu horizonte

Acreditas em coincidências? Terão os meus pensamentos algum significado? Profetizarão algum encontro? Gostava de acreditar nisso. Mas de ti só me resta um cheiro, uma silhueta. Não me parece que vais voltar para mim, com as respostas que em silêncio te pedia. Caminho numa cidade, onde outrora chegamos quase a passear e ocorre-me pensar que talvez, talvez no virar daquela esquina eu vou esbarrar contigo. Mas eu atravesso aquela e muitas outras e tu nem no silêncio me alcanças. Vives numa cidade que aos meus olhos é estranha, cinzenta, repleta de prédios altos e vozes potentes.
Será que, na multidão de estranhos que te envolvem, procuras o meu rosto? Será que te apareço, saída das brumas da memória, quando deixas a tua mente repousar o suficiente? Será que procuras esses momentos de acalmia, para vasculhares no teu passado o som da minha voz, a minha imagem cinematográfica? Pergunto, pergunto, sem que nenhuma resposta surja, sem que nenhuma mensagem se reproduza. Porque as coisas não estão intimamente ligadas, chego à conclusão que os meus pensamentos, ou o número de vezes em que te intrometes na minha vida, não são sintomas de coisa alguma, não anunciam de todo o teu regresso, não profetizam a tua vinda. São singelos símbolos do tédio.