domingo, maio 30

Para uma antropologia dos processos identitários

«É o acesso à capacidade ‘dramática’ de delirar, que introduz a dimensão humana, identitária, cultural e civilizacional no conjunto dos primatas em que a biologia nos insere, dando origem ao ‘salto antropológico’ de que emerge o «homo sapiens demens» (Morin, 1973). (José Gabriel Pereira Bastos, 2000)

Sempre gostei desta frase. Parece-me que ao assumirmos a capacidade delirante dos sujeitos sociais, a capacidade destes em se construírem identitariamente estamos a honrar de certa forma o Homem, numa tentativa que reduzir a distância que vai do nós ao outro.

Um olhar sobre o passado

«Toda a leitura do passado traz a marca do tempo em que é produzida. Por muito grande que seja o esforço para que a hermenêutica não seja excessivamente presentista, por muito grande que seja o esforço para desideologizar, não é possível um olhar neutro, bacteriologicamente puro, absolutamente inocente sobre o passado.» in Introdução, História Comparada – Uma Visão Cronológica, Volume II, 1996, Circulo de Leitores.

sábado, maio 29


Dalí

News from Viana

Olá olá olá, várias vezes olá!!!

Pedes-me que te conte novidades, que te fale dos meus projectos, sempre pendentes, sempre adiados. Tenho evitado a solidão em frente ao computador, como se este representasse (é assim que se escreve ou será com um travessão?) uma página em branco que exige ser preenchida. Na verdade tenho andado adoentada, uma semana pré menstrual seguida de uma semana com menstruação real e física (não perguntes!!!) tem afectado o meu humor intensamente.
Novidades? Novidades? Uma amiga minha vai-se casar, a carta vou começar a tirar para o próximo mês e como hoje tenho um peso astronómico em cima da minha cabeça não consigo pensar em mais nada senão dormir, estender-me numa praia com o som do mar rente ao ouvido. Há livros que gostava de ler, coisas que queria pesquisar, assuntos que estão entravados na garganta, porque não encontro as palavras, aquela prontidão argumentativa para os debater.
Fala-me tu de ti, das tuas novidades, da tua gripe amorosa (gostaste?!), do teu trabalho... As novidades estão todas do teu lado.

Muitos beijos de uma rapariga rabugenta e de mau humor

Happy Thoughts

Sérgio com 10 meses

Parabéns Sérgio

O meu Sérgio comemora hoje os seus cinco anos.
As ruas secretas que criamos quando passeamos por Viana, ou os postais que enviamos quando estamos na net, ou o dar banho às bonecas, ou o ir à biblioteca constituem o código que move o nosso companheirismo. Ao Sérgio que vi nascer e crescer solto, amparado pelo nosso amor, pela nossa forma de fazer, dizer e manifestar, brincar e amar, só lhe posso desejar tudo de bom sabendo perfeitamente que a concretização desse desejo está além da minha vontade.
Quando tinha dois anos costumava perguntar-lhe 'como faz a vaquinha, Sérgio', ao que ele respondia muuuuuuuuuuuu... Manterei isso na memória: a expressão do rosto dele, o som da voz, autoritária quando quer alguma coisa, meiga quando quer um carinho.

domingo, maio 23

To P.

Descobri que o Amor era possível olhando o mundo da tua janela, ao som da tua voz. O amor entre uma rapariguinha de dezasseis anos e um homem de tez morena, com a letra mais incrível que conheci...

Um pouco de antropologia

Numa crónica data de 23 de Janeiro de 1993 (posteriormente publicada no livro Os Tempos que Correm, 1996), o antropólogo Miguel Vale de Almeida, proponha ao leitor, um pequeno exercício de terreno. Proponha ele a realização de um pequeno questionário, junto a um prédio da nossa escolha, composto apenas por duas perguntas, a saber, ‘quantas pessoas vivem no apartamento?’ e ‘que relações de parentesco têm entre si?’ Após a recolha dos dados, proponha, então o antropólogo, a realização de um pequeno relatório sobre a ‘Família’. O propósito do exercício seria a descoberta empírica dos vários tipos de organização familiar que actualmente coabitam com o modelo tradicional de família nuclear, constituída por pai, mãe e filhos, monogâmica, heterossexual, reprodutiva. A família da Igreja, da escola, dos anúncios de publicidade, do Estado, dos manuais de sociologia, não está sozinha, uma vez que coabita com todo um outro conjunto de uniões entre os seres humanos. Podemos, sem duvida dizer, que quando falamos na crise da família estamos a falar de um tipo particular de modelo de família. E está em crise, porquê? Grosso modo, porque a liberdade individual, as relações de afecto, os movimentos sociais, a liberdade sexual, a separação entre sexualidade e reprodução, tornou possível a emergência que outras formas de viver em família.
Podemos argumentar que a família nuclear está em crise devido à entrada da mulher no mundo do trabalho, devido aos movimentos feministas e ao movimento gay e lésbico; podemos argumentar também que a crise é fruto da modernidade ou da pós-modernidade que atravessamos. De todos os factores que podem estar na base destas mudanças, um deles parece-me basilar, a saber, a dimensão afectiva que está na base das relações que hoje em dia estabelecemos, quer como casais, quer como pais ou filhos. Não podemos negar que é o afecto que, cada vez mais, vai ditando os relacionamentos que mantemos. Nesse sentido, a família já não pode ser concebida como uma entidade económica, reprodutiva, uma vez que temos de ter linha de conta, que as relações de conjugalidade se estabelecem agora com base no princípio do ‘amor romântico’. O que verificamos é que a família, assim como a sexualidade, o casamento e as relações sociais, estão a sofrer um incrível processo de transformação, processo esse intimamente relacionado com a importância que agora é dada à dimensão afectiva e emocional inerente aos seres humanos.
Que o modelo tradicional, monogâmico, reprodutivo, heterossexual, seja continuamente objecto de referências e de laivos de saudosismo, é um facto que não podemos negar. Está em todo o lado, é objecto de discursos, de campanhas publicitárias, de referências quotidianas, é encarado, pensado e reproduzido como se representasse o suporte do bem-estar social, assente na ‘normalidade’ dos comportamentos. Assim como não podemos negar o favoritismo em termos de projecção mediática que este mesmo modelo é alvo. Mas a mãe solteira, o casal gay, os pais adoptivos, o casal de divorciados também são ‘famílias’, apesar de não serem objecto de retratos publicitários, apesar de não se verem retratados nas políticas do governo. A crise da família moderna está subjacente a todas estas transformações em torno da intimidade, transformações que possibilitam aos indivíduos um conhecimento aprofundado do corpo e da sua sexualidade, assim como permitem que esse mesmo conhecimento seja vivido em liberdade de escolha.
Ora, o que me assusta nos discursos em torno do que deve ser a família e afins é a incapacidade que demonstram em reconhecer essa mesma dimensão, em reconhecer a sexualidade como prazer, procura e descoberta e não como mero acto com finalidade reprodutora, em reconhecer a afectividade e o sentimento como os principais motores de união. Quando pensamos que estamos a fazer civilização verificamos que existem outros que teimam em nos manter encarcerados, nesses ideais absurdos e castradores da nossa própria liberdade de sentir, de viver a nossa sexualidade, as nossas escolhas, a nossa afectividade. Acho, e pelo menos falo por mim, que já não há pachorra para tanto provincianismo, para tanta ‘idiotice’, ignorância, conservadorismo, hipocrisia junta.

The inwardness of Good-bye is tragic

«A intimidade do adeus é trágica.
Como em tudo o que manifesta o tempo,
Amargo é saber que nem as estrelas teremos em comum.
Quando a tarde cai suave no meu pátio
Das tuas páginas ergue-se a manhã.
O teu Inverno será a sombra do meu Verão,
A tua luz a glória da tua sombra.
Persistimos juntos.
(…)»
Borges

To Grace

«Não quero riquezas, nem honrarias. Viajo pelo mundo. Só quero força na minha vida»
Li Bai

«Devemos defender sempre em nós, o que os outros acham ridículo em nós»
Roland Barthes

Rosto Precário

Escrevia Eugénio de Andrade a respeito d’Os Afluentes do Silêncio: O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! (…) A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem. (…) É da constatação do silêncio, da apetência do silêncio, da condenação ao silêncio que falam todos os meus afluentes, em prosa ou em verso.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, maio 21

Michel Tournier , O Rei dos Álamos

‘Trago-o no fundo de mim, como uma ferida, a esse ser ingénuo e meigo, um pouco míope, que tão facilmente deixa que abusem de si, que tão facilmente se recompõe de um desgosto’

‘Cá vou vivendo nu e solitário sem família e sem amigos (...) O meu clima moral habitual e uma tristeza de ébano, opaca e tenebrosa.’

quinta-feira, maio 20

O fantasma da insónia

Escreve Borges todos os caminhos levam à morte, perca-se.
Perco-me para não olhar a morte nos olhos, para escapar ao pesadelo de começar tudo outra vez, desde a mais tenra infância. Mas o que é que entendo por morte? É da morte dos membros de que falo? É a morte da esperança e do optimismo? É da tua morte? A morte é um fantasma que surge quando não consigo dormir, quando a cabeça não se ajusta às concavidades da almofada. Surge a morte nesses momentos, junto às sombras na parede, na palpitação do coração, que não se acostuma aos ruídos do escuro. Os meus sonhos são pequenos. Mas será que existem sonhos pequenos? Imagino-me livre de medos, capaz de largar os labirintos nos quais constantemente me perco. Parece-me que existe um conjunto de coisas que se colam a nós, que teimamos em manter perto, porque nos parece que a vida sem elas não faria sentido, como se elas sustentassem qualquer espécie de delírio, qualquer espécie de auto estima, ou de segurança. Mantemos perto, rente a nós, não abrindo canais para que a água corra sem barreiras para além das margens, aquilo tudo que nos parece que resume a nossa personalidade. Às quatro da manhã encontro-me sentada na secretária do meu quarto, junto à janela olhando para a noite lá fora. Não consigo dormir e chego à conclusão que as insónias são muito glamorosas nos livros mas que na vida real despertam a loucura dos membros. Tento ler, tendo ouvir música, mudo de posição, volto à cabeceira da cama, nada. O sono tarda em chegar. E o sono que chega não é tranquilo. Vem povoado de fantasmas e dos rostos que habitam o meu quotidiano, rostos transfigurados pela fadiga, pela sonolência.

Fala o M


A chuva é estreita quando cai nos teus ombros. Escuto na tua voz o som do mundo. Amo a terra e o teu rosto com a mesma dedicação. A chuva é estreita quando cai na minha janela. Atrás do cortinado algo se esconde. O quê? Pergunto o que é que o teu rosto esconde?
A chuva é estreita quando encolho os ombros. A chuva é estreita quando à noite puxo os cobertores até a cabeça. Estreita é a chuva quando ouço a voz do meu primo ecoando na minha memória. «Tita», «eta» tornam-se no som cândido das minhas recordações.


Ela fala de silêncio e silêncio na boca dela ganha uma conotação quase mítica, torrencialmente metafórica. O espaço silencioso que separa duas pessoas, aquele milésimo de distância que vai de mim ao outro, esse pequeno gargalo é uma das suas obsessões. Procura, então analiticamente superar o dilema, esse cessar de proximidade integral, fazendo da distância algo de inevitável. Digo analiticamente, querendo com isso dizer intelectualmente. Dessa forma retiro a afectividade, uma vez que emocionalmente a distância ontológica entre dois seres continua a ser algo que ela sente dolorosamente. Para tudo tenta encontrar um significado, que tanto pode ser racional como pode ser místico, religioso ou poético. Para ela, e fazendo parte do entendimento que ela tem do mundo, existe uma significação muitas vezes mística, intrínseca a todos os momentos. Com a escrita e fazendo uso das palavras mais próximas àquilo que ela quer exprimir, tenta uma aproximação ou uma reconciliação com o mundo social. Ela diz que o encontro com a escrita foi um encontro casual, simplesmente aconteceu. No entanto as palavras vivem na textura das suas mãos e o conhecimento que ela tem do mundo, o saber que ela expressa passa pela metamorfose dos textos. A alma dela encontrou a escrita, a sua invenção do mundo passa pelas palavras, sem dúvida. É um acolhimento caloroso, muitas vezes sofrido, mas vital. A escrita surge nela como uma forma de sublimação da tristeza.

O Sonho

Imagina que acabaste de ter um sonho. Imagina que sonhaste que eras uma borboleta. Agora imagina que acordas: tens a percepção que sonhaste. Ainda não sabes se acordaste, de facto, ou se continuas a dormir. Mas, na confusão do teu despertar eis que perguntas: quem sou eu? Um homem que acabou de ter um sonho em que era uma borboleta, ou uma borboleta que agora está a sonhar que é um homem? Vês como é frágil a linha que separa o oniríco da vigília? Será que essa linha existe, de todo? Perguntas qual é a importância de tudo isto? Perguntas, entre dentes, porque é que te falo de coisas que não consegues entender. Nem eu mesma sei. Não quero reduzir a minha complexidade à ilusão de achar que tenho alguma coisa para dizer, para te dizer. Falamos línguas diferentes. Eu falo em poesia e magia, de coisas que passam em mim, mas que não encontram eco em ti, porque não compreendes uma linguagem anterior à tua criação, porque não te interessa, porque no universo das coisas que nos dão forma eu sou água e tu és terra. Eu também te vou desiludir. Mas isso não tem importância, pelo menos para ti.

quarta-feira, maio 19


Van Gogh

Boticelli, O Nascimento de Venús

domingo, maio 16

Busque Amor novas artes, novo engenho

Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

Luís de Camões

Quiçá este será o meu último mail

Quiçá este será o meu último mail para ti...
Quem sabe se o tempo que aqui passei não será esquecido num tempo feito futuro, num futuro feito dias? Quem nos garante que não será remetido para o compartimento da nossa mente que lida com as memórias, com os afectos, com a nossa ligação aos espaços, aos tempos, aos amuos e lamentações recipocras?
Quem saberá, porque quem pode saber o que o futuro nos reserva? O futuro feito dias quero dizer. Esse futuro rente, que nos corre no sangue, suspenso pela adrenalina da antecipação... esse futuro próximo cujo cheiro conseguimos sentir, cuja linha do horizonte conseguimos antever, mas que está sempre, um, dois, três passos à nossa frente.
Adiantará dizer que, o que esse novo tempo me trouxer, não me interessa? Que me interessa apenas este canto tranquilo, onde me sento todos os dias, com o teu rosto à minha frente? Adiantará dizer que esta noite na minha rua choveu de rompante? Adiantará de alguma coisa as palavras que já estão gastas e cujo sentido anda perdido no tempo? Sobra-nos a amizade, é certo. Essa linguagem silenciosa e cúmplice.

Envio-te quiçá o meu último mail e despeço-me assim, porque é assim que me relaciono com o mundo... ‘Um beijo e um adeus, vai dando noticias’ não chega para mim, não com a densidade mental e existencial, com que deus ou o diabo me dotou. Por não saber o que o futuro me vai trazer, porque não saber se o futuro me levará aos espaços por onde habitas e te moves, uso o correio para te enviar o meu beijo, o meu adeus e o meu ‘vai dando noticias’. Porque também te podia dizer tanta coisa, e ainda assim tanta coisa ficaria por dizer, digo-te apenas que conservarei na memória o teu mau feitio, o teu humor sempre tão volúvel e as tuas palavras. Porque este pode ser o meu último mail, porque a despedida pode ser só um beijo dado de rompante, roçando a pele... envio-te quem sabe o meu último mail.

Older Women II

«Herdei do ramo feminino da minha família as linhas cheias do meu corpo, o conhecimento simples do amor e do tacto. Herdei também essa espécie de sapiência no viver, no amar. A mesma necessidade de aceitação, a mesma tolerância pelo lado da vida que se quer oculto. Escondi palavras ao longo da vida? É certo que sim. Tive sabedoria para me integrar completamente, para deixar que os outros se rissem da sua própria ignorância? Claro que não. A minha sensação de viver em suspenso foi permanente. Não tive um momento que resguardo e sempre ansiei por isso, por encostar o meu rosto a poesia do Eugénio.
É certo que perdi o rumo da morte, se a quisesse procurar não saberia por onde começar. Por isso fico à espera que ela me encontre, que ela esbarre em mim e me reconheça. Às vezes sinto-lhe o bafo, ou a presença. Às vezes parece que se esconde atrás dos cortinados. Fecho os olhos e fico à espera. Anseio por olhar nos olhos o que sempre antevi imerso nas sombras. Essa presença abafada, da qual nunca falamos, por medo de a despertar. Essa presença encostada ao ouvido e à imaginação. Tanto tempo perdido em coisas sem sentido, em coisas que estão fora e não dentro de nós. O que fazer para recompensar tudo o que não fiz? Todas as más decisões que tomei? Toda a falta de disciplina que durante toda a minha vida esteve presente? Se pudesse voltar, berrava mais, tenho a certeza.»

Happy Thoughts

Older Women I

«As manhãs de domingo já não sabem a café com leite. A semana já não começa com o cheiro do café e do jornal, com o som sufocado da rua. Os comboios já não têm o mesmo cheiro e as estações mudaram concerteza de lugar, porque se regressar à estação dos comboios da minha meninice tenho a certeza que não vou encontrar as linhas abandonadas, os bilhetes usados no chão, o sol a bater nas árvores, as casas sem ninguém, aquele barulho em suspenso, como se a estação vivesse na zona marginal da vila, ou da cidade ou da aldeia, num espaço perdido, desfocado, longínquo. Sei que não vou encontrar o barulho dos meus passos ou o som do meu riso de criança naquela plataforma abandonada. Sei que não, sei que não vou encontrar, porque estou velha e porque as coisas mudaram. Quem sabe se os comboios agora não andam sobre os carris sem fazerem barulho, sem expelirem fumo. Quiçá agora os comboios já não se chamam comboios. Quiçá têm um outro nome. Quiçá agora já nada é igual ao que foi quando eu era jovem. Se tivesse que viver de novo, não sei se iria sobreviver, não sei se teria resistência, ou paciência para lidar com tudo isso, com tudo o que envolve ter um corpo, com sangue a correr nas veias. Minguaria, encolheria até cessar de existir, porque não sei falar estas línguas, e porque a língua que eu sei falar ninguém entende.
Agora quero sobretudo regressar a casa, à casa que conheci quando criança, caminhar pelos corredores e voltar a ouvir a voz da minha avó, como sempre foi, chamar por mim. Ouvir o meu nome na sua voz, ver a boca dela mover-se até se formar nos lábios os sons do meu nome. Anseio agora por regressar ao silêncio do reencontro. Quero ver, enquanto caminho, a mobília perder o caruncho, os tapetes perderem o pó, as cores regressarem aos tecidos, os candeeiros brilhantes de novo. E eu regressando passo a passo ao mundo que deixei, à rua onde cresci, à fonte onde bebia água, onde cheguei a pedir a deus que me levasse os cravos que tinha nas minhas mãos de menina.
Se fechar os olhos e prestar atenção consigo ver a minha avó, sentada no sofá, com o seu xaile castanho sobre os joelhos. Se fechar bem, mesmo bem os olhos consigo realmente vê-la, com o seu sorriso de velha. Ouço a sua voz a perguntar por mim: ‘por onde é que andaste rapariga que há horas que ando à tua procura’. E vejo-me a mim mesma a correr pela casa, feliz, esvoaçando, gritando: ‘por aí, avozinha, por aí. Mas voltei, avozinha, voltei.’ E ela sem saber que as horas dela foram os meus anos e que a sua preocupação foi a minha angústia. Dar-lhe-ei um beijo na cara enrugada, o beijo que guardo há anos na algibeira das calças. Terá o meu beijo o gosto das viagens que fiz, dos caminhos que percorri, das pessoas que amei, das lágrimas que sempre surgiam do nada?
Penso que não reconheço o mundo, faço um esforço mas não o reconheço. Perdi a conta ao número de vezes que quis voltar para casa, perdi a conta ao número de vezes que senti a nostalgia presa à carne, como uma segunda pele, áspera, pigmentada. ‘O mundo está a mudar’, disse-o várias vezes. Sinto-o na água, sinto-o nos ossos, sinto-o no corpo. O mundo está de facto a mudar. Mas o meu tempo aqui já terminou ou terminará em breve e eu farei a minha última viagem. Vou ao teu encontro avó, entrando nas brumas vou encontrar-te sentada à minha espera. Estou velha, mas quando penso em ti regresso ao meu corpo de menina. ‘Avó’ na voz de uma velha o que é que significa? Fará sentido? Terei eu direito a ter uma avó, ainda que seja uma avó imaginada, retalhada pela minha memória? Tu, que eras o meu porto de abrigo, estreita-me nos teus braços, dá-me um rebuçado para eu voltar a sorrir. Faz-me acreditar que o mundo é qualquer coisa de especial.»

sábado, maio 15

Helberto Helder

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado.
Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima –
Eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.

Keep your eyes open

\«(.)(.)»/

Ontem passei à tua varanda 2 vezes e suspirei.
2 vezes passei à tua varanda e 2 vezes suspirei.
Onde estavam os teus longos cabelos de oiro que outrora entrançavas e da varanda
pendias, esses cabelos que eu trepava enquanto tu gemias, sorrias?...

De um e-mail do David

Eternidade

Elfo

sexta-feira, maio 14

O teu rosto no meu horizonte

Acreditas em coincidências? Terão os meus pensamentos algum significado? Profetizarão algum encontro? Gostava de acreditar nisso. Mas de ti só me resta um cheiro, uma silhueta. Não me parece que vais voltar para mim, com as respostas que em silêncio te pedia. Caminho numa cidade, onde outrora chegamos quase a passear e ocorre-me pensar que talvez, talvez no virar daquela esquina eu vou esbarrar contigo. Mas eu atravesso aquela e muitas outras e tu nem no silêncio me alcanças. Vives numa cidade que aos meus olhos é estranha, cinzenta, repleta de prédios altos e vozes potentes.
Será que, na multidão de estranhos que te envolvem, procuras o meu rosto? Será que te apareço, saída das brumas da memória, quando deixas a tua mente repousar o suficiente? Será que procuras esses momentos de acalmia, para vasculhares no teu passado o som da minha voz, a minha imagem cinematográfica? Pergunto, pergunto, sem que nenhuma resposta surja, sem que nenhuma mensagem se reproduza. Porque as coisas não estão intimamente ligadas, chego à conclusão que os meus pensamentos, ou o número de vezes em que te intrometes na minha vida, não são sintomas de coisa alguma, não anunciam de todo o teu regresso, não profetizam a tua vinda. São singelos símbolos do tédio.