quarta-feira, outubro 26

O infinito

E.E.Cummings

SOMEWHERE I HAVE NEVER TRAVELLED

Somewhere I have never travelled, gladly beyond
Any experience, your eyes have their silence:

In your most frail gesture are things which enclose me,

Or which I cannot touch because they are too near


Your slightest look easily will unclose me

Though I have closed myself as fingers,

You open always petal by petal myself as Spring opens

(Touching skilfully, mysteriously) her first rose


Or if your wish be to close me, I and

My life will shut very beautifully, suddenly,

As when the heart of this flower imagines

The snow carefully everywhere descending;


Nothing we are to perceive in this world equals

The power of your intense fragility: whose texture

Compels me with the colour of its countries,

Rendering death and forever with each breathing


(I do not know what it is about you that closes

and opens; only something in me understands

the voice of your eyes is deeper than all roses)

Nobody, not even the rain, has such small hands

Yes, please...

Acordo todos os dias às oito. O Sol irrompe logo pela manhã, com uma desenvoltura e teimosia que me supreende. As paisagens que no primeiro dia eram estranhas e castiças vão-se tornando corriqueiras e perdem a beleza do primeiro olhar. A língua, essa estranha, reduz-se a esse love que não sei reproduzir: uma forma de cumprimento, tão longe da menina do meu país. «Cheers Love» é uma expressão que ouço com frequência neste país de miss e madames.

No Avião....

«O livro da vida é longo e aborrecido». Sinto a aproximação das lágrimas e sei que ao mínimo som íntimo vou começar a chorar. Deixei o meu mundo num único movimento, brusco e repentino. Deixei os sons da minha língua, o sol e as cores do meu país para abraçar a palidez deste espaço imenso e desconhecido. Deixei a poesia musical dos poemas do Eugénio por uma cidade cujos mistérios ainda não conheço.

Sempre vivi de um ponto de vista afectivo em pequenos não-lugares, como se os espaços por onde eu passei nada mais fossem do que portos de abrigo passageiros. A língua era a ponte que os unia, aquilo que dentro deles era comum. Sinto a minha nacionalidade como um anátama. Tento convencer-me que já não sou uma menina de dezassete anos, mas uma spinster de vinte e cinco. Mas a imensidão do desconhecido, o manancial de coisas que ainda não sei assusta-me para lá de todas as medidas. Procuro respirar profundamente e dar um passo de cada vez, procuro estar em silêncio até que a vontade de falar irrompa dentro de mim.

O rosto da despedida vai-me perseguir durante muito tempo e o desejo de dormir eternamente é quase palpável, tal é o desamor que sinto.

Depois das Férias....

Encontro a janela do comboio mutilada por uma parede, resultado dos exigentes confortos modernos que transformam uma simples viagem de comboio em qualquer coisa de claustrofobico. Gosto de espaços abertos e da ilusão de tempo infinito, mas aqui sinto-me fechada, estranha.

As minhas férias terminaram e o tempo de sol e mar, de almoços com os pés cheios de areia e o corpo cheio de sal vai dar lugar aos espaços conhecidos do quotidiano, à previsibilidade das emoções, à rotina diária. Deixei o D na plataforma da estação; deixei-o tão repentinamente que nem me ocorreu pensar que provavelmente só o voltarei a ver daqui a muito tempo.

A forma como nos relacionamos com os outros continua a ser um mistério para mim. Assimilamos pareceres sobre eles e sustentamos as nossas relações com base neles. Mas na realidade nunca chegamos a conhecer ninguém, pois não? No processo esquecemos que somos volúveis, que mudamos, que consoante o tempo passa vamos alcançando um maior respeito por nós mesmos e uma maior autonomia. O D está igual e diferente ao mesmo tempo e sinceramente não consigo ultrapassar a sensação de que sou apenas mais um nome na agenda telefónica dele, nem sempre necessário e por vezes esquecido. Um nome que permanece lá, por capricho ou teimosia.

Acabei de passar por Coimbra e viajo ao som da música e do vaivém dos outros. Estou longe de ter aquela aura de mulher sofisticada ou de jovem hippie que viaja sozinha, sem muitos recursos, apenas com a bagagem cultural que possui. Sou alguém perdida entre dois mundos, com os meus chinelos de dedo e o meu cabelo solto. De qualquer das formas, após uma semana a tormar banhos em comunidade, a dormir numa tenda indiscreta, a acordar todos os dias com os primeiros raios de sol e com a respiração de um outro rente ao ouvido, sinto-me tudo menos sofisticada. Sinto-me cansada e com fome, com vontade de me estender na cama e romanticamente adormecer.

To Rachel [antes das férias]

Tenho de fazer uma data de coisas, mas não me apetece fazer nada, não me apetecer mexer um único músculo, como se toda a minha vida assentasse num frágil baralho de cartas que eu ergui entre mentiras piedosas e fantasias. Fantasio com uma vida melhor, sabendo que isso implica um renascimento, fantasio com um rapaz de olhos cinzentos e cabelo preto, levemente ondulado, fantasio com um corpo sereno e esguio, capaz de mexer com a imaginação de alguém, fantasio com uma mente sagaz, capaz de discutir sem se atrapalhar, fantasio com uma alma despida de temores, fantasio com uma vida assente na coragem e numa generosidade que não possuo. Ás vezes dou por mim tão imersa em mim mesma que o próprio acto de falar banalidades me é doloroso. E sinto-me tão sozinha, tão atrapalhadamente sozinha, incapaz de agir num mundo que não conheço, incapaz de viver uma idade que sinto que não possuo. Como se eu fosse uma peça de roupa estendida num corda de secar, presa por umas molas. Como se toda a minha existência se reduzisse a uma maré infinita de contradições: sou aquilo que não sou, quero aquilo que não quero. «Amor é um fogo que arde sem se ver»... Imagino-me sentada num comboio, olhando a janela, imagino uma aura de solicitude e de gratificação à minha volta, imagino-me mergulhada nos meus pensamentos, enquanto o comboio percorre quilómetros de paisagem. Imagino-me assim, como uma aventureira sossegada, que gosta de beber café preto e ler o jornal, que prefere o comboio ao carro, que gosta de pequenas cidades e pequenos segredos, que gosta de fotografias a preto e branco. Penso nessa pessoa que é uma mulher, imagino que é uma pessoa que sabe falar de coisas interessantes sem gaguejar, que sabe sorrir com delicadeza, que sabe dizer sim e não com desenvoltura. Eu quero ser essa pessoa, serena e confiante.

Imagino que algures em mim ainda sobrevive alguma coisa de especial, um pequeno pedaço de céu, à espera que alguém o devolva à luz do dia. Queria acreditar que a vulnerabilidade que sinto viva vai encontrar eco no coração de alguém.

Descubro que essa rudeza quase corporal que detecto nos meus gestos, essa agressividade que surge dentro de mim quando os momentos se tornam sentimentais de mais, me faz perder essa espécie de delicadeza feminina, como se eu fosse um pedaço de pedra, incapaz de exprimir afectos. Nisso saio à minha mãe, para quem uma prova de amor é uma pancada no ombro e um gracejo. Gostava de ser um modelo de virtudes e graça femininas, uma petit coquete que sabe fazer bencinho.

Sinto a tua falta, Raquel. Sinto falta daqueles dias em que passaste em Lisboa, na minha casa e acordavas cedo, sinto falta daquele apartamento que nunca foi meu, sinto falta de falar com alguém interessante, sinto falta dos meus vinte anos.