segunda-feira, novembro 28

Carta à Raquel

Recebi hoje o teu postal. Aqui não se usam caixas de correio. As portas têm uma ranhura e é por ai que a correspondência chega até nós. Cai no chão logo pela manhã. Os meus três dias de folga terminam hoje e amanhã regresso ao meu dia-a-dia, que nesta cidade sinto como se de um enorme limbo se tratasse, como se vivesse num lugar sem coordenadas temporais ou espaciais que me sustentem a queda. E caio constantemente, Raquel, numa oscilação de sentimentos, desejos e aspirações que me assusta. Vivo como se não tivesse chão debaixo dos pés, como se o perigo físico, emocional ou afectivo espreitasse a cada esquina. Confessar-te que sinto falta de tudo o que há de mais elementar é redundante, até porque se encontra implícito no conhecimento que tens de mim. É certo que ‘isto’ representa um potencial de possibilidades, mas também a cada passo que dou a minha perda é iluminada, o mundo que deixei para trás é relembrado. Tenho a sensação que por muito tempo que passe e por muito que eu consiga construir uma vida aqui o meu coração permanecerá lá, ligado à minha mãe e à minha casa, ao céu, ao cheiro e sabor da minha terra. Apesar de toda a sofisticação que eventualmente possa encontrar aqui continua a ser naquele quotidiano sem surpresas que eu quero estar, imersa no choro e riso do meu Sérgio. Confesso-te as minhas fraquezas, só a ti. Sinto que não tenho o direito de as expressar, sinto a obrigação de viver sem raízes passíveis de me roubarem a felicidade e a apetência de viver neste lugar estranho.
Ouço o Jorge Palma constantemente, canto as músicas dele cada vez que me sinto só e nesses momentos penso que a distância que vai de mim ao outro também se consubstancia nisso: no conhecimento das músicas dele, no seu rosto, na postura dele em palco. Eu conheço-o, eles não; eu conheço as idiossincrasias da minha língua, os recantos aonde ela é mais doce, mais luminosa, eles não; eu conheço os eléctricos de Lisboa, sei do cheiro das castanhas, dos elevadores, do frio refrescante das ruas das minhas cidades; conheço Viana nocturna, se fechar os olhos desvendo todo um património de recordações e desejos quase corporais. Ouço os Xutos sempre que vou trabalhar, e esse rock português transformou-se num objecto de amor. Canto ‘as saudades que eu já tinha da minha casinha’ com uma sofreguidão que me surpreende, embalo o coração na onda de recordações reais e imaginadas que a música dos Xutos, dos GNR, do Jorge Palma me inspira. Apetece-me abrir os braços a deus que eu não sei se existe e encontro na neblina nocturna de Londres um pouco da magia que procurava.

Quero sentir magia na minha vida, quero sentir que ela me pode alcançar, quero essa energia viva dentro de mim, quero que o meu coração seja um órgão envolto em generosidade e amor. Quero ser surpreendida pelos outros, ostensivamente, positivamente surpreendida. Mas tudo à minha volta me parece tão seco e árido. Faço um esforço para ser sincera, cruamente honesta comigo mesma, uso a escrita para contornar as feridas. Mas quando entro dentro de mim sinto-me envolta em escuridão, sinto os sentimentos oscilantes, a tristeza perto. Procuro a frase, a oração, o ritual que me devolva aquilo que mais falta me faz, que me devolva o sentido das coisas, que me devolva a crença na minha beleza, nas mimhas potencialidades. Mas depois penso para que serve essa auto consciência, para que serve essa intuição, portadora de maus augúrios, para que serve sentir as coisas até aos ossos se isso não me traz nem felicidade nem liberdade. A densidade da minha alma devia servir para alguma coisa para além da expressão de lamentos e interrogações.

Dizem que vai nevar. Lembro-me da última vez que vi neve, há pelo menos vinte anos. Era eu uma catraia a caminho de escola. Lembro-me das botas que usava nos dias de chuva, do rosto da minha professora, do calor da minha mãe, do meu cabelo loiro a embalar o meu rosto de menina. Lembro-me do caminho que percorria até chegar a casa e pergunto-me se esse caminho ainda existe, se eu algum dia voltarei a casa, se eu voltarei a beber água da fontinha, se regressarei a Viana por altura das festas, se voltarei a ver o fogo da ponte? É engraçado perceber como o passado de repente se transforma numa personagem, como o nosso património de repente ganha asas e agitação.

Um café português....

Sinto falta de comprar o Público e sinto falta da falta que o café me faz. Sinto falta de acordar cedo e tomar o pequeno almoço no café da esquina, das minhas torradas e meia de leite.