terça-feira, maio 16

Notebook

O meu muzito...


Querida Raquel

Actualmente só me lembro daquele verso do António Variações: 'sou estou bem aonde não estou'. E falo não só de espaços, mas também de tempos, ou realidades. Eu seria mais feliz se vivesse num livro, quer ele fosse uma comédia ou um drama. Viveria feliz se o mundo fosse mesmo a preto e branco e não este arco-íris de incertezas. É quase uma da manhã, não consigo dormir, estou a ouvir o Oceano Pacífico e finjo que ainda vivo entre Lisboa e Viana, que estou no autocarro que sai de Lisboa às seis e chega a Viana à meia-noite. Neste momento estou a atravessar a ponte e avisto Sta Luzia ao longe. Sinto o sono rente, só penso no aconchego da minha cama. O meu pai vai esperar-me, a minha mãe já está deitada, à espera do meu beijo. Se me concentrar consigo sentir os cheiros e a sensação de estar de volta. Regresso a Viana e vejo a minha cidade, a sua quietude nocturna, com uma nitidez que só mesmo a fome permite. E apercebo-me que vivo esfomeada, de atenção, de amor, de solicitude, de beijos e carícias. E apetece-me chorar, Raquel, por esse mundo que deixei para trás, pelo vazio oportunista que encontro aqui. Mas as lágrimas não caem. Há anos que não caem. Hoje vi o meu Hugo, servi-lhe comida. Bem esse é o meu trabalho. Ele piscou-me o olho e enquanto olhava para ele, pensei em todos aqueles que antes dele me ocuparam o coração e como é patético esse processo de enamoramento platónico, tão previsivel; tão incontornável é o desejo, como a certeza de que ele nunca será satisfeito.
'Spinsterood' é uma palavra que cada vez mais me assunta. Porque é algo mais do que ser solteirona, é um estado de espírito permanente, patético, pobre, seco. E eu não quero isso para a minha vida. Quero alegria e aceitação, quero arrebatamento, emoção. Sinto-me como uma criança mimada, que teimosamente quer o brinquedo bonito que viu na montra, quando sabe que jamais terá dinheiro para o comprar e deus é essa mãe sensata que sabe que não fiz propriamente nada para o merecer.
Há um verso que faz parte de uma música dos Resistência: 'acendo mais um cigarro/invento mil ideais/porque amanhã seio-o bem é sempre longe demais'. Conforta-me esta música, enche-me a alma, ainda que saiba que essa sensação de pertença é duvidosa e ilusória. Não estou aqui, Raquel. Estou lá entre Lisboa e Viana. Estou no Chiado com a Paula, à espera dos outros e da Paula Godinho, para irmos à Tasca do Chico ouvir fado. Estou contigo nos Santos Populares, estou com o David no Bairro Alto a comer ameidoins. E é lá que eu vivo, com o Adriano e o Sérgio, naquelas águas furtadas no quarto andar, cheias de verde e de luz. É lá que o meu coração vive, nessa cidade que já não vejo à meses. E sim Londres é o mundo dos vivos, das possibilidades, das auto descobertas, mas é no mundo das sombras mortas da memória que teimo em querer estar. Como explicar os meus estados de espírito, como conciliar toda esta ausência com a alegria que por vezes sinto por estar aqui?