quinta-feira, novembro 23

Coisas de infância

Stuck in a moment

Recebi a tua carta hoje. É uma sensação estranha encontrar a tua carta, a tua caligrafia no meio da estranheza que é um correio partilhado. Vivo numa casa de ninguém e há dias em que me sinto tão sozinha no meu anonimato que o próprio acto de respirar me é doloroso. Vivo presa a um momento, suspensa num panorama escuro, presa a uma lingua amistosa, mas cheia de ratoeiras, num país prazenteiro mas frio. Finalmente apanhei o comboio da vida, mas não sei o destino, não conheço o percurso.
Conheci um rapaz. Chama-se D, fala cinco linguas, tem um sentido de humor muito próprio. Olha para mim e eu quero ver nesse encontro os preliminares de alguma coisa, de alguma intimidade, mas a única coisa que me ocorre pensar em que eu sou 'damage goods', e que tudo é tão frágil e que essa particula de interesse, de curiosidade se pode esfumar tão facilmente. Mas sabe tão bem falar com ele, Raquel. Com uma pessoa adulta depois de meses a lidar com gente sem educação, sem formação, sem uma particula de interesse pelas coisas que para mim são essenciais.
Os teus poemas também encontram eco em mim, porque apesar de tudo eu continuo a ser a mesma neurótica de sempre, a cometer permanentemente os mesmos erros, vivo numa incessante perseguição por respostas que eu sei que não existem. Conservo o meu mau feitio e isso é um conforto. Já não sou aquela que eu era, ou melhor não sou apenas o passado, e estou a tentar conhecer aquela que sou agora.
O David comprou-me uma planta/flor nos meus anos. Pela primeira vez na minha vida alguem bateu à minha porta com um ramo de flores. Foi um momento cinematográfico: lá estava eu de pijama, sonolenta, com uma cara de incredulidade e espanto e um sorriso que se foi abrindo quando percebi que o homem não se tinha enganado no remetente.
Aguardo a Primavera.