quarta-feira, agosto 1

Olá R


É estranho pensar que já nos conhecemos há pelo menos nove anos. É estranho e assustador pensar que há dez anos entramos para a faculdade, que há pelo menos oito anos que trocámos correspondência, opiniões, afectos, confidências, livros, ideias.

Estou sentada na cama e sei que tenho que escrever, porque a escrita sempre foi uma espécie de termómetro na minha vida. Por isso procuro-a como uma forma de encontrar eco, como um meio de me fundir no universo das coisas que me transcendem. O vácuo que sinto neste momento é inédito. Nunca olhei para o meu horizonte com tanto descrédito ou desamor. Queria poder falar com alguém, falar mesmo. Despejar num estranho todo este desgosto. O que é que nos torna sublimes, Raquel? As tragédias pessoais que conseguimos ultrapassar com diligência e altruísmo? Com um abanar de ombros, porque acreditamos que são testes à nossa fé? Somente essas pessoas podem assinar a palavra ‘merda’? E nós aonde é que ficamos? Nós que não temos um manancial de dramas que dêem sentido e significado à nossa existência, em que é que ficamos? Nós que somos os filhos esquecidos de uma geração, os marginais que nem com o lado marginal da vida estão familiarizados ficamos aonde? Gostava de ter toda a claridade do mundo ou viver nas sombras. É este meio-termo que me oprime. Gostava de fazer parte desse universo de boémios, que criam vidas, que perpetuam pensamentos e emoções. Gostava de me sentir inteira, integra, capaz de sublimar a vulgaridade que me rodeia.

Quero furar as orelhas e fazer uma tatuagem. Quero beber um copo de vinho quando chegar a casa depois de um dia de trabalho. Quero cantar as canções do Jorge Palma e voar com a voz dele até esses lugares místicos que compõem as músicas dele. Quero acreditar que o amor é uma possibilidade, uma probabilidade, uma certeza. Quero regressar a mim mesma, ao núcleo da minha identidade. Quero voltar a ser esse ser rezingão e afectuoso. Quero sentir o coração leve como uma pena. Sei lá como se combate isto. Agarro-me à estúpida ideia que deus existe, que as coisas mudam, que as portas se abrem, que os gritos e a dor são ouvidos e sentidos para lá das nossas paredes. Agarro-me ao cliché que nada dura para sempre, que eu sou uma mulher desejável, inteligente, que merece que alguém lute por ela. Mas acreditar nisso não devia exigir tanta disciplina e atenção. Devia ser uma crença inata, inscrita nos meus genes.

Já estamos em Agosto. Como sempre começo as minhas cartas e nunca as acabo. O Verão, nos contornos em que eu o conheço, tarda em chegar. O tempo está ameno, mas sinto falta do cheiro a maresia, dos espaços à beira mar, dessas tardes longas de Verão. Sinto falta de sentir falta do calor e até mesmo de caminhar pelas ruas de Lisboa quando tudo o que me apetecia era estar no fresco da minha casa.

terça-feira, maio 29

Calvin & Hobbes

E.E. Cummings

it may not always be so; and i say
that if your lips,which i have loved,should touch
another's,and your dear strong fingers clutch
his heart,as mine in time not far away;
if on another's face your sweet hair lay
in such a silence as i know,or such
great writhing words as,uttering overmuch,
stand helplessly before the spirit at bay;

if this should be,i say if this should be-
you of my heart,send me a little word;
that i may go unto him,and take his hands,
saying,Accept all happiness from me.
Then shall i turn my face,and hear one bird
sing terribly afar in the lost lands.

O antes e o depois

Quem me dera ter o coração vazio. Quem me dera que existisse um manual de sobrevivência, que me ajudasse a sobreviver a tudo isto. Quem me dera saber expressar em palavras o manancial de coisas que sinto. Quero ter forças para recuperar a pacatez dos meus dias, voltar a ter como ferramentas de descoberta do mundo as palavras, os textos, a capacidade de me rir de mim mesma. Se calhar estou mesmo a precisar de umas férias, mudar de cenário, respirar fundo. As minhas atitudes e a minha vontade espelham um conjunto de clichés. Infantilmente espero que as coisas mudem, voltem a ser aquilo que eram dantes. Com a teimosia que somente as crianças têm, exijo de deus uma resposta, uma saída, alguma espécie de tranquilidade. É esse silêncio infantil que eu não consigo combater que me fere. É esse corpo que trazia perto, que podia explorar a meu bel prazer que me faz falta. É a ausência dele em mim que me magoa, o desejo de o ter, um cheiro que já não é um corpo, toda essa intimidade quase conjungal que se esfuma. É a culpa, a procura de respostas, o vazio de um espaço outrora ocupado por um terceiro.

domingo, maio 20

Jerry

Olá Raquel

Hoje fui passear até Richmond, com apenas cinco libras no bolso. Pela primeira vez na vida senti a minha alma tão cheia que tive que recorrer à caminhada como forma de expiação. Por isso caminhei, sentei-me no banco com vista para o rio e fiquei assim, com o olhar perdido no horizonte, com essa angústia e solidão rentes à pele. Procurei com isso a exorcização dos meus medos, sair de dentro de mim e analisar ou perspectivar a minha vida com frieza. Tentei perceber de onde vêm estes pensamentos, quais são os princípios pelos quais devo viver, tentei saber aonde se encontra a linha da minha vida, da minha realidade e onde começam os delírios e a voz dos fantasmas de anos e anos de solidão. Acho, Raquel, que é esse medo, o medo de viver permanentemente sozinha, de nunca encontrar alguém que me entenda, que lute por mim, que me perseguia, que define os meus estados de alma. É o medo de nunca vir a ser amada, a incapacidade de encontrar o sentido para a minha vida e para a densidade emocional que me habita, que me atormenta e que define a forma como me relaciono com os outros.

Esta semana tem sido particularmente difícil e sinto-me tão desamparada, como se eu fosse a única pessoa com a qual eu posso contar e sinto a cabeça tão cheia de imagens catastróficas.

Fui caminhar, pela primeira vez na minha vida, passei a semana inteira a chorar e há dias que não durmo como deve ser. Preciso de um abraço e de algum conforto e não sei aonde os posso ir buscar. Como canta o Jorge Palma, ‘sinto-me frágil’, ou a Mafalda Veiga, ‘hoje o tempo dói’. Estou sozinha e tenho que me habituar à ideia de que não existe príncipe encantado nenhum, que ninguém me vai salvar e que não posso colocar na mão de estranhos o meu bem-estar, a minha felicidade. Agora percebo porque é que as pessoas bebem. Se bebesse, bebia para poder cessar toda esta actividade cerebral, por um momento de oblívio, de esquecimento.

Mandei na semana passada um postal para o Sérgio, com a imagem de um sapo, verde e risonho. Imagino a sua surpresa quando receber uma carta endereçada a ele. Um miúdo de sete anos a receber cartas.

Queria estar num lugar qualquer, ter os recursos para fazer as malas e viajar até a um sitio onde pudesse estar em sossego, estender-me sobre os sons da minha língua, fundir-me com o chão de uma livraria, percorrer as ruas de Lisboa ao som dos eléctricos. Estar entre amigos a discutir antropologia, o estado do mundo, politica internacional, direitos humanos, livros como se eu realmente fosse essa intelectual que aparento ser nesta dissertação. Mas tenho saudade dos cheiro e do silêncio das bibliotecas, da ansiedade antes e após os exames, das cantinas universitários. Sinto falta de ter esse estatuto definido, de saber o que escrever quando nos formulários te perguntam qual é a tua profissão, pois já não tenho o direito de dizer que sou estudante. Estou farta de não encontrar eco nos outros. Tantas e tantas vezes sinto que comunico apenas em monólogos, que falo sozinha mesma quando falo com os outros. E sempre que alguém me deixa mal, tenho essa vontade estúpida de puxar pelas orelhas do fulano ou da fulana e gritar que eu não mereço ser tratada assim.

Cada vez mais se torna difícil confiar em alguém, Raquel. Deixar os outros entrar, sem desconfiança, com o coração aberto, com a leveza infantil das crianças vai se tornando em algo quase impossível. Tenho pouca fé nesta humanidade, tenho pouca fé nas pessoas que me rodeiam e estou sempre à espera de ser decepcionada de uma forma ou de outra. Porque todos nós vivemos nas nossas pequenas ilhas, com os nossos fantasmas e medos, quando abrimos o coração à possibilidade de um relacionamento fazemo-lo sempre com a ‘pulga atrás da orelha’.

Disse-te há tempos que queria encontrar um livro de auto-ajuda que me fornecesse dicas, outra abordagem, menos literária e mais prática, para que a decisão de seguir um caminho em detrimento de um outro deixasse de ser minha e passasse a ser do estúpido livro. É um desejo infantil, eu sei, mas não deixa de ser tentador.

Não sei se te disse, mas tenho um rato cá em casa. Eu e o D baptizamo-lo de Jerry.

sexta-feira, março 30

Things that Last

Viana

News From Home

Raquel
Estou a ouvir o Jorge Palma, para não variar. Após tantos anos, a música dele ainda me comove, me transporta, me eleva para além de mim mesma. Como se existisse um mundo mágico para além da vulgaridade da vida. Norte é uma música e tanto. «Quantos pontos cardiais ficarão no cais da solidão/quantos barcos irão naufragar, quantos irão encalhar na pequenez da tripulação…». Tenho a sensação que é preciso de facto viver mesmo muito para que isto faça sentido. Arranhar-te-á a vida o suficiente para fazeres tuas as palavras dele? O turbilhão que vivemos interiormente não encontra eco na pequenez do nosso quotidiano. De onde vem então este mal-estar, esta angústia, este permanente estado depressivo, que nada parece colmatar?

As minhas férias estão a terminar. Revisitei os lugares onde outrora fui pacatamente feliz. Tento obsessivamente reconstruir os pedaços de um antigo quotidiano, como se faltasse um elo entre mim e essa miúda que deixei para trás. Como se ela ainda habitasse esses mesmos espaços, numa outra dimensão talvez. A verdade, Raquel, é que nós nos habituamos a tudo, a todas as mudanças. Sentimos sim, obrigação de nos mantermos fiéis a um passado e culpa quando nos apercebemos que isso é impossível. Por isso tento a todo custo saborear uma gastronomia sem a qual eu já vivo, ler o jornal que já não me dá tanto prazer, sentir volúpia pelas pequenas coisas que traduzem esse sentimento de «portugalidade».

Vivo entre mundos, Raquel. Sempre vivi. E quando regresso sinto aquela velha decepção, porque já me habituei à ausência e regressar a casa já não tem aquele sabor, já não traduz aquela sensação de respirar fundo. Voltámos ao Variações e ao seu «só estou bem, aonde não estou». Vivo em trânsito, e penso se será por isso que não faço planos, que não projecto a minha vida para daqui a dez anos; se será por isso que palavras como permanência e compromisso me assustam. Perder o núcleo da minha personalidade, ou chegar à conclusão que isso nem sequer existe é algo que me assusta terrivelmente. Não encontrar prazer nas coisas onde outrora encontrava entristece-me. Continuo a perseguir esse sentimento de volúpia, de libertação, de bem-estar.

Viana continua a ser Viana. Sem carro, agora sou obrigada a caminhar. A ponte velha que unia Darque à cidade contínua fechada, por isso a vila que me viu nascer parece uma cidade fantasma, estilo aquelas do velho oeste. Olho para as coisas à minha volta e sinto que falta qualquer coisa. Quiçá é o hábito, a conformidade, ou a minha capacidade de adaptação, que não me permitem sentir a felicidade do reencontro com estes espaços.

Entretanto já se passou uma semana. Já regressei a Londres, a Bath Road, ao trabalho, aos meus fiéis clientes. Recebi hoje a tua carta. Falas das palavras que têm eco. Norte é para mim uma palavra que me fascina e me transporta. Talvez porque vivi anos na parta Norte do país. Na verdade a palavra Sul também se encontra revestida de sentido. Sul faz-me lembrar as planícies do Alentejo, o branco das casas, temperaturas amenas, uma ideia de infinidade.

quarta-feira, março 7

Insónias

Tento conservar na memória, como se se tratasse de um axioma, que as coisas mudam, que a realidade que nos envolve muda. As cores mudam, as estação sucedem-se, os sentimentos despertam e morrem e renascem e nada dura para sempre.
É essa crença que sustenta o meu quotidiano, a esperança que o dia seguinte seja diferente do dia posterior. Que esse dia seguinte sustente a tua presença. Aguardo a tua presença, o teu sentido de humor, que como tu dizes é uma resposta ao meu sentido de humor. Gosto de olhar as tuas mãos, gosto do teu nome e gosto dos caminhos que percorres para chegares até mim.

terça-feira, março 6

terça-feira, janeiro 23

~The Reasons of my Unhappiness~

(Hi, my name is Daniela, and I’m unhappy!)

I was trying to think why I’m so unhappy and the image that comes to my mind is your angry, exasperated face this afternoon. And thinking about that makes me smile. I’m sorry for being just a disappointment, and for trying your patience so hard. ;)

I know is childish to say that my life doesn’t turn out be what I was hoping; I’m 27 years old and I don’t have my future already map like you do. I’m building my life step by step and I’m afraid that I’m wasting my time. Most of the time I feel that my ‘being’ doesn’t survive in this language; I can’t be myself in English. I feel lonely, with no one to talk to, to share ideas and emotions, and thoughts. I feel that I’m losing something precious, some crazy way to be in the world, some originality of thought. I study anthropology for four years and that alone change my life. And I’m losing that too. I know that I made the right choice and every day is a new day, and in a way good things happen, but when I look around all I see is this green that drives me crazy, all this politeness, and I feel trap. I feel that I’m living in ‘nobody’s land’. And in that moment all I want is the open sky of my country, the richness of my language, the open face of my cousin, the warm of my friends. And I know I can’t have it all.

I also know that if I look around me I find plenty of reasons for being happy and grateful. I’m white, European, middle class, with a happy childhood. I never saw wars, its affects; I don’t know anything about the negritude of the world. But my world is not that vast, and my expectations are high.

My unhappiness is unreasonable, childish maybe, the unhappiness of someone that doesn’t want to grow up, and complains how unfair life is. I know I don’t have that right. But I’m just a lost soul, with a weary sense of humour. And my life is changing, and I’m just afraid.

I have a blue cat in my wall and drawings that my cousin did for me. Those things alone make me happy: poetry and music, books and rainbows, driving my car, the beach, an ice cream, and the e-mails that David sends me, writing a good text, saying unbelievable things, being nice to cute guys, eating good fruit, sleep, esquilos, the train’s stations, when it rains on a sunshine day, all of this makes me happy, because it makes me believe that god really exist and we are not alone.

domingo, janeiro 21

A Walk in the Park

Carta à Raquel

Estranhas o facto de eu ter o telemóvel sempre ligado, estranhas o facto de lhe ter atribuído a função de despertador. Na verdade eu não tenho uma relação assim tão saudável com esse instrumento do capitalismo moderno. O meu embora esteja ligado está permanentemente no silêncio. Causa-me ansiedade, frustação, birra.

Estou presa no momento, incapacitada de qualquer espécie de expressão. As palavras são casulos, fechadas em si mesma, à espera desse momento de liberdade que vem com o nascimento. Também eu gostaria de renascer, de sentir dentro de mim algum vestígio de sensatez, de originalidade, de verdade, de coerência interna. Queria sentir que alguma coisa tem ordem, estrutura, mas sinto apenas essa sensação de ter uma personalidade gasta, como se ela fosse um pedaço de roupa corroída por constantes lavagens. Então falta-me aquele eco de ferocidade infantil, aquele olhar transparente, a leveza que a honestidade traz. E fico a pensar se isso é apenas um defeito meu, ou se todos os outros também sentem o fardo dos anos, o acumular do pó, o peso dos truques e das mentiras e das desculpas que fazem parte do modo como vivemos a vida. Sinto falta de ter o coração vazio. Sinto falta de percorrer as ruas de Viana e respirar lentamente, deixar o ar entrar e sair dos meus pulmões com suavidade e sentir nesse gesto, nos segundos que demora a concretização desse gesto que tudo está bem no mundo, que a vida é mesmo uma canção do Jorge Palma, ou uma conversa entre duas amigas pelo telefone.

Habita-me um conjunto de potenciais de textos, o relatório das viagens ao interior da minha alma, as mil e uma observações que faço diariamente. Falta-me relatar tudo isso, com destreza, sagazmente, contar os episódios antropológicos a que assisto quotidianamente, desconstruir o mundo outra vez, e recuperar a minha sanidade. Hoje perguntaram-me a origem dos meus estados depressivos, o porquê da tristeza e do descontentamento. O facto de ser europeia, classe média, viver num país dito civilizado, não passar fome e não ter um passado problemático seriam condições sine quo non para a felicidade permanente e para um estado de gratidão perpétuo. Como explicar que a tristeza que me habita é um traço de personalidade, que eu até gosto dela? Existe em mim, como a teimosia existe nos outros. É em certos momentos contextual, e nesse aspecto eu sei que a mudança só depende de mim. Arranjar um melhor emprego, arregaçar as mangas e começar a viver só depende de mim. O sentimento de pena surge quando realizo que não tenho energia para isso. É essa inércia que gostava de saber combater, esse medo ontológico que gostava de saber enfrentar. Como explicar sem que isso soe a auto piedade ou infantilidade que eu sou um ser humano a três dimensões?