Sou um comboio, avó, sou um pleno comboio, um comboio que prolonga as linhas da tua voz, os invisíveis sons do teu pranto. Amo as linhas do teu corpo, o sorriso que entreabre o teu denso rosto, a trovoada, o esgar de dor com a mesma dedicação. Quero alcançar um mundo que cheire a lençóis acabados de lavar, que tenha o sabor e a textura dos teus cozinhados. Porque só a esse ritmo, só com esse amor nos lábios as coisas ganham sentido. Trago na boca o leitoso sabor do teu seio, enrugado, o cheiro de um membro velho, num corpo gasto, testemunha de anos bem-vindos na cozinha, na tua tão aromática cozinha. Avó, a minha avó do xaile castanho, roto caindo sobre os ombros, a avó do «foi melhor assim» se ao menos soubesses, se ao menos me escutasses quando te falo de dentro das paredes, quando, no meio de lençóis brancos, acabados de estender te grito o meu nome, com loucura, o meu nome, como se se tratasse de um carro que desvairado percorre a estrada, as veias íngremes do teu corpo. Se ao menos soubesses o que me vai no pensamento quando em dias de chuva estendo o meu olhar à noite, quando a tristeza entra mim de rompante, desvairada enche os meus olhos de suplica. Preciso dela para me sentir terna. Não consigo ser infiel à minha alma ou às batidas do meu coração.
Sou um comboio, é certo, desde o tempo em que levava a marmita do avô à estação e ia pelo campinho, carregadinho de uvas; sou um comboio desde o tempo em que apanhava os bilhetes velhos e usados e assim brincava a viajar por entre mundos.
Penso que o meu amor pela mochila às costas, sentido como uma espécie de fidelidade romântica, terá nascido aí, enegrecido pelo cheiro do carvão, pelo peso do comboio sobre os carris, pelo boné na tua cabeça e o apito na tua boca, exasperado pela imagem de um circuito, pela imagem de uma hipotética colisão. Avô, o meu amor pela aventura suave, pelas paisagens que promovem a solidão, pelo silêncio da distância, pelo silêncio em todas as suas formas terá começado aí, no teu colo, nas linhas de uma locomotiva que voava sem eu saber. Porque os livros foram sempre importantes, por as linhas das frases e dos corpos sucumbiram cedo de mais em mim, tenho pelo mundo uma apetência simples e silenciosa. Não procuro grandes revelações, só respostas para algumas perguntas, só o alcance de um amor prazenteiro, lento e escorrido.
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