«As manhãs de domingo já não sabem a café com leite. A semana já não começa com o cheiro do café e do jornal, com o som sufocado da rua. Os comboios já não têm o mesmo cheiro e as estações mudaram concerteza de lugar, porque se regressar à estação dos comboios da minha meninice tenho a certeza que não vou encontrar as linhas abandonadas, os bilhetes usados no chão, o sol a bater nas árvores, as casas sem ninguém, aquele barulho em suspenso, como se a estação vivesse na zona marginal da vila, ou da cidade ou da aldeia, num espaço perdido, desfocado, longínquo. Sei que não vou encontrar o barulho dos meus passos ou o som do meu riso de criança naquela plataforma abandonada. Sei que não, sei que não vou encontrar, porque estou velha e porque as coisas mudaram. Quem sabe se os comboios agora não andam sobre os carris sem fazerem barulho, sem expelirem fumo. Quiçá agora os comboios já não se chamam comboios. Quiçá têm um outro nome. Quiçá agora já nada é igual ao que foi quando eu era jovem. Se tivesse que viver de novo, não sei se iria sobreviver, não sei se teria resistência, ou paciência para lidar com tudo isso, com tudo o que envolve ter um corpo, com sangue a correr nas veias. Minguaria, encolheria até cessar de existir, porque não sei falar estas línguas, e porque a língua que eu sei falar ninguém entende.
Agora quero sobretudo regressar a casa, à casa que conheci quando criança, caminhar pelos corredores e voltar a ouvir a voz da minha avó, como sempre foi, chamar por mim. Ouvir o meu nome na sua voz, ver a boca dela mover-se até se formar nos lábios os sons do meu nome. Anseio agora por regressar ao silêncio do reencontro. Quero ver, enquanto caminho, a mobília perder o caruncho, os tapetes perderem o pó, as cores regressarem aos tecidos, os candeeiros brilhantes de novo. E eu regressando passo a passo ao mundo que deixei, à rua onde cresci, à fonte onde bebia água, onde cheguei a pedir a deus que me levasse os cravos que tinha nas minhas mãos de menina.
Se fechar os olhos e prestar atenção consigo ver a minha avó, sentada no sofá, com o seu xaile castanho sobre os joelhos. Se fechar bem, mesmo bem os olhos consigo realmente vê-la, com o seu sorriso de velha. Ouço a sua voz a perguntar por mim: ‘por onde é que andaste rapariga que há horas que ando à tua procura’. E vejo-me a mim mesma a correr pela casa, feliz, esvoaçando, gritando: ‘por aí, avozinha, por aí. Mas voltei, avozinha, voltei.’ E ela sem saber que as horas dela foram os meus anos e que a sua preocupação foi a minha angústia. Dar-lhe-ei um beijo na cara enrugada, o beijo que guardo há anos na algibeira das calças. Terá o meu beijo o gosto das viagens que fiz, dos caminhos que percorri, das pessoas que amei, das lágrimas que sempre surgiam do nada?
Penso que não reconheço o mundo, faço um esforço mas não o reconheço. Perdi a conta ao número de vezes que quis voltar para casa, perdi a conta ao número de vezes que senti a nostalgia presa à carne, como uma segunda pele, áspera, pigmentada. ‘O mundo está a mudar’, disse-o várias vezes. Sinto-o na água, sinto-o nos ossos, sinto-o no corpo. O mundo está de facto a mudar. Mas o meu tempo aqui já terminou ou terminará em breve e eu farei a minha última viagem. Vou ao teu encontro avó, entrando nas brumas vou encontrar-te sentada à minha espera. Estou velha, mas quando penso em ti regresso ao meu corpo de menina. ‘Avó’ na voz de uma velha o que é que significa? Fará sentido? Terei eu direito a ter uma avó, ainda que seja uma avó imaginada, retalhada pela minha memória? Tu, que eras o meu porto de abrigo, estreita-me nos teus braços, dá-me um rebuçado para eu voltar a sorrir. Faz-me acreditar que o mundo é qualquer coisa de especial.»
domingo, maio 16
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