Numa crónica data de 23 de Janeiro de 1993 (posteriormente publicada no livro Os Tempos que Correm, 1996), o antropólogo Miguel Vale de Almeida, proponha ao leitor, um pequeno exercício de terreno. Proponha ele a realização de um pequeno questionário, junto a um prédio da nossa escolha, composto apenas por duas perguntas, a saber, ‘quantas pessoas vivem no apartamento?’ e ‘que relações de parentesco têm entre si?’ Após a recolha dos dados, proponha, então o antropólogo, a realização de um pequeno relatório sobre a ‘Família’. O propósito do exercício seria a descoberta empírica dos vários tipos de organização familiar que actualmente coabitam com o modelo tradicional de família nuclear, constituída por pai, mãe e filhos, monogâmica, heterossexual, reprodutiva. A família da Igreja, da escola, dos anúncios de publicidade, do Estado, dos manuais de sociologia, não está sozinha, uma vez que coabita com todo um outro conjunto de uniões entre os seres humanos. Podemos, sem duvida dizer, que quando falamos na crise da família estamos a falar de um tipo particular de modelo de família. E está em crise, porquê? Grosso modo, porque a liberdade individual, as relações de afecto, os movimentos sociais, a liberdade sexual, a separação entre sexualidade e reprodução, tornou possível a emergência que outras formas de viver em família.
Podemos argumentar que a família nuclear está em crise devido à entrada da mulher no mundo do trabalho, devido aos movimentos feministas e ao movimento gay e lésbico; podemos argumentar também que a crise é fruto da modernidade ou da pós-modernidade que atravessamos. De todos os factores que podem estar na base destas mudanças, um deles parece-me basilar, a saber, a dimensão afectiva que está na base das relações que hoje em dia estabelecemos, quer como casais, quer como pais ou filhos. Não podemos negar que é o afecto que, cada vez mais, vai ditando os relacionamentos que mantemos. Nesse sentido, a família já não pode ser concebida como uma entidade económica, reprodutiva, uma vez que temos de ter linha de conta, que as relações de conjugalidade se estabelecem agora com base no princípio do ‘amor romântico’. O que verificamos é que a família, assim como a sexualidade, o casamento e as relações sociais, estão a sofrer um incrível processo de transformação, processo esse intimamente relacionado com a importância que agora é dada à dimensão afectiva e emocional inerente aos seres humanos.
Que o modelo tradicional, monogâmico, reprodutivo, heterossexual, seja continuamente objecto de referências e de laivos de saudosismo, é um facto que não podemos negar. Está em todo o lado, é objecto de discursos, de campanhas publicitárias, de referências quotidianas, é encarado, pensado e reproduzido como se representasse o suporte do bem-estar social, assente na ‘normalidade’ dos comportamentos. Assim como não podemos negar o favoritismo em termos de projecção mediática que este mesmo modelo é alvo. Mas a mãe solteira, o casal gay, os pais adoptivos, o casal de divorciados também são ‘famílias’, apesar de não serem objecto de retratos publicitários, apesar de não se verem retratados nas políticas do governo. A crise da família moderna está subjacente a todas estas transformações em torno da intimidade, transformações que possibilitam aos indivíduos um conhecimento aprofundado do corpo e da sua sexualidade, assim como permitem que esse mesmo conhecimento seja vivido em liberdade de escolha.
Ora, o que me assusta nos discursos em torno do que deve ser a família e afins é a incapacidade que demonstram em reconhecer essa mesma dimensão, em reconhecer a sexualidade como prazer, procura e descoberta e não como mero acto com finalidade reprodutora, em reconhecer a afectividade e o sentimento como os principais motores de união. Quando pensamos que estamos a fazer civilização verificamos que existem outros que teimam em nos manter encarcerados, nesses ideais absurdos e castradores da nossa própria liberdade de sentir, de viver a nossa sexualidade, as nossas escolhas, a nossa afectividade. Acho, e pelo menos falo por mim, que já não há pachorra para tanto provincianismo, para tanta ‘idiotice’, ignorância, conservadorismo, hipocrisia junta.
domingo, maio 23
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