sexta-feira, junho 25

Dois Poemas Ingleses

«Com que posso prender-te?
Ofereço-te ruas estreitas, presentes desesperados, a lua dos subúrbios miseráveis.
Ofereço-te a amargura de um homem que olhou durante muito e muito tempo para a lua solitária»

JLB

Borges

«Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fazemos de conta que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.»

«O nosso destino (…) não é assustador por ser irreal, é assustador por ser irreversível e de ferro. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo»
Obras Completas de JLB

Apoteose do vazio

«Não gosto de futebol mas sou patriota.» Rematou ela. Foi com esta frase que me calou. E eu fiquei com a resposta entalada na garganta, sem a conseguir libertar em argumentos terríveis, que deitassem por terra essa filiação patética à nação. Como explicar-lhe que a palavra patriotismo e afins me lembra a máxima do salazarismo, me recorda a tríade salazarista: deus, pátria e família? Como explicar-lhe que convivo mal com isso, como posso explicar-lhe que esse patriotismo de que se orgulha é para mim acéfalo e balofo? Também não gosto de futebol, mas ainda gosto menos de histerias colectivas. Quiçá não fui feita para sentir a felicidade efémera das vitórias desportivas. Não me deleito com a vacuidade dos discursos pré, durante e pós jogos de futebol. Não me reconheço nessa máxima anónima de pessoas que compram o cachecol com as cores da pátria, que decoram as janelas de suas casas com as cores berrantes da bandeira nacional.

«Não gosto de futebol, mas sou patriota. Por isso aprendo a linguagem futebolística, por isso torço com muita força para que Portugal ganhe, por isso defendo que o Figo até joga bem. Ele não marca golos, rapariga, ele faz os passes para que outros possam marcar, vês? Mas tu não percebes nada de nada. Também gosto de ver a entrada em campo, o momento em que entoam o hino. É tão bonito, não é? Ah, a ti nada te comove, até parece que queres que os espanhóis nos ganhem.» Continua ela. E blá, blá, blá…

O que me irrita nesta expressão é o facto de não dizer absolutamente nada. É uma daquelas expressões vazias, que vamos buscar ao baú das frases feitas, quando nos é útil. Desconstruir esta frase para alguém que não está interessado em ver o seu patriotismo reduzido a cinzas é uma tarefa contra-producente. Porque esta expressão supostamente encerra uma espécie de justificação ideológica, impossível de contra-argumentar. Porque acima de tudo apela a uma naturalização dos sentimentos e das ligações. Se não apoio a selecção, logo não apoio o meu país, não sou patriota e se não defendo as cores da minha bandeira, o que é que eu mereço? Ser excluída afectivamente dessa histeria colectiva, serem-me negados os benefícios da felicidade inócua e passageira de uma vitória. Ficar sozinha com o meu azedume intelectual, eis o meu castigo, eis o resultado de ter os pés assentes no chão. E deveria ralar-me com isso? Não, não devia. Mas quando esse nacionalismo entra pela minha casa adentro posso argumentar que somente os «intelectuais» não se entregam a ele, e que por isso é perfeitamente «normal», que a minha família se deixe embalar. Mas nem isso me consola. Primeiro porque é falso e segundo porque nós devíamos saber viver melhor estes momentos de competição entre equipas, sem que isso se traduzisse na palhaçada que vemos diariamente. Sem que isso exigisse dos comuns dos mortais frases toscas, raciocínios toscos, gestos toscos. São muitas as coisas que me transportam, mas o futebol não é seguramente uma delas e ainda que fosse tenho a certeza que não sucumbiria a essa overdose de frases sem sentido, de gesto sem sentido. Ser patriota é uma obrigação, à qual se entregam por prazer. Não interessa se é produtivo, combativo ou não. Bastará em último caso manifestar, entre cervejas, gritos e sacudidelas, essa «natural» fidelização nacional, para expressar um sentimento de pertença, baseado sabe-se lá no quê. Ocorre-me perguntar o que é que eles ajam que Portugal é. E sobretudo ocorre-me perguntar se realmente acham que existem motivos de orgulho. Por minha parte não sinto muito orgulho, nas situações em que tenho que clarificar a minha nacionalidade.

segunda-feira, junho 21

Depois da noite

«A escrita é uma amante caprichosa. O desejo era, em mim, um poço de água benta, incorruptivelmente casto. O desalento que sentia, o mal-estar que, por hábito, se apoderava de mim cumpria uma função pedagógica e o que outrora servia de matéria ficcional deixou de ter qualquer interesse. Cantei o amor que sentia por ti, da mesma que outros o fizeram antes de mim. Percorri os mesmos lugares comuns, fiz uso das mesmas palavras sem sentido, sintomas apenas de um sentimento de desejo amoroso, que se manifestava em metáforas. Há anos que desejo pedir-te desculpa por esses devaneios românticos, por esse excesso linguístico, por ter sucumbido a essa escrita excessiva, imbuída de uma sensualidade fácil e vulgar. Agora que o meu tempo é infinito, agora que a minha mente navega entre o passado e o presente, neste momento único em que apareces para colmatar o tédio que me invade, dou comigo a pensar no tempo que se foi, a usar a memória para romantizar o nosso encontro, a minha fuga e a tua despreocupação.»

sábado, junho 12

Um começo?

A escrita devia ter comigo um rosto excessivamente inteiro, brutal. No entanto é em fragmentos que ela se revela. Aterra no meu quotidiano aos bocados, aleatoriamente. Sem contemplações, sem recuos. O seu humor é oscilante e temperamental. Apenas existe. Mas a sua existência é, em mim, sobretudo caprichosa.
De uma forma convulsiva, de forma integral, com um rosto inteiro, devia perseguir-me, usurpar a minha respiração até ao momento em que eu, sem forças, me rendesse. Não o faz. A sua procura, que termina no começo de mim mesma, é especialmente tímida, vacilante. Os meus passos vagueiam no vazio. Entre fantasmas. Vagueiam entre aspirações e certezas, entre o peso do corpo e a leveza do sonho.
A escrita está em mim como um personagem tangente à minha existência. Mas trata-se de um personagem trémulo, sombreado, um esboço infantil apenas. Não sei por onde me leva. Nem sei aonde reside o seu poder de persuasão. O seu canto é um canto de sereia. É uma personagem que eu sigo com fé, às escuras, às avessas, sem uma grande opinião sobre ela.
Será necessário ter fé para escrever? Será necessário estar no meio de uma tempestade, para que as coisas se revelem com a violência da verdade?

Ternura

Old Man

Ele pensou várias vezes no que devia dizer, tantas vezes que por fim foi o dizer que desabou dentro dele, como uma tempestade. O desenvolvimento das coisas naturais como a linguagem, pensou ele então, fazia parte de um processo necessário. Porque não podia, sabendo como as coisas funcionavam calar-se. Simplesmente não aguentava o silêncio da frustração que ia progressivamente crescendo. Era uma energia que nem sequer compreendia, porque simplesmente não era traduzível em palavras, ou em gestos. Era imensa, dolorosa, e ele mastigava-a, sem se conseguir libertar. Ela existia e ele estava bem ciente disso. Existia dentro dele, no seu interior. Durante anos tentou encontrar uma linguagem capaz de verbalizar a densidade do mal-estar que o mundo lhe inspirava, as palavras certas para expressar os sentimentos que lhe enchiam a alma, desde dos temores à euforia. Não conseguia encontrar aquela dinâmica deambulatória entre os argumentos e os contra-argumentos, aquela simpática prontidão de resposta para a defesa das suas formas de ver o universo, visões do mundo que ele também não compreendia como podiam ser só suas, dada a certeza que possuía de que as coisas só podiam ser assim. Era impossível que fossem de outra forma e as ideias dos outros eram apenas versões distorcidas da mesma realidade. Uma questão de economia formava a relação que mantinha com os seus pensamentos. Ele sabia que era necessária a expressão verbal ou gestual das ideias que quotidianamente o invadiam. Sabia que essa era uma tarefa fundamental e que o conhecimento e a mestria que daí resultava constituíam um saber que valia a pena partilhar.
Tendo dedicado longos períodos de reflexão a essa actividade cedo chegou à conclusão que a expressão verbal ou artística dos seus pensamentos permitia ampliar e alargar o espaço da sua mente. Essa actividade permitia não só exercitar a mente para os segredos da retórica e do discurso como possibilitava sobretudo criar espaço para outras ideias entrarem e circularem no espaço mental e reflexivo do seu espirito. Sabia que existiam pensamentos que se fixavam em determinados pontos e que arrastavam consigo outros pensamentos para ele perniciosos. Liberta-los, exigia dele uma agudeza de acção e uma destreza na manutenção da disciplina à qual se tinha obrigado. Não deixava nada ao acaso e treinava a sua memória para prestar atenção somente àquilo que ele considerava indispensável. A sua mente era caracteristicamente elástica. Consoante os anos iam passando foi aperfeiçoando essa técnica. Era um senhor simpático, diziam, com um temperamento um tanto explosivo, que produzia longos e enfadonhos discursos sobre quase tudo. Dava a impressão que era um homem simples e austero, uma pessoa de hábitos, que não tinha grande apreço por mudanças, fossem quais fossem. Ele pensava que o mundo girava e girava e que era difícil manter os pés assentes no chão. Vivia de forma simples, sem luxos, ou excessos. Vivia como uma espécie de ermitã, na esperança de encontrar uma forma mágica que banisse da linguagem as palavras. Tinha por hábito dizer que pronunciar sons cansava deveras a garganta. Como seria mais fácil comunicar sem articular sons, sem sequer abrir a boca, comunicar sem sentir aquela absurda intenção de falar. Para ele a ideia de paraíso resumiasse a isso: a uma linguagem telepática. O que culminaria na supressão da distancia que ia dele ao outro.

Coisas que não interessam a ninguém

Não gosto do café muito doce, gosto dele levemente adocicado, quase amargo. Também não gosto de dizer bom dia às pessoas. Não gosto de ouvir música alto. Não gosto de um mundo a preto e branco.

António Ramos Rosa

«Amor, eu sei que vives num breve país»

«Estou vivo e escrevo Sol»

«O chão por onde ando é aparentemente tranquilo
mas eu ando nele como se tivesse minado
porque não ando só nele
mas através do tempo que não posso prever
e que no seu vazio ou nas suas figuras me arrepia me enerva ou
[me confunde]»

...Go home...

(…)
- É tarde, amanhã tenho de acordar cedo. A outra cerveja fica para a próxima. – Levanto-me, poiso a minha mão no seu ombro e adoptando um tom maternal digo-lhe para ir para casa a horas decentes. Ainda não perdi esse velho hábito, o hábito de me armar em mãe de quem já tem idade para ter juízo. Pego nas minhas coisas, ele diz-me que fica um pouco mais, e eu saio para o frio da noite, com a tristeza de quem já está habituada a este ritual, ao ritual de regressar a casa sozinha. Percorro as ruas, deixo a calçada, e penso em coisas existenciais, em relacionamentos, no passado, naquelas situações que ficaram por resolver por falta de entendimento cúmplice entre duas pessoas. Vou descendo a rua, lentamente, com as mãos escondidas dentro dos bolsos, sentindo que esta é, sem dúvida, a melhor altura para caminhar, para sentir os odores nocturnos da cidade, o regresso a casa de estranhos, o meu próprio regresso. Desço devagar, não consigo andar depressa, vou junto à estrada para evitar ser assaltada. Não consigo imaginar como é que o não andar no passeio pode evitar o assalto, mas sou em algumas coisas supersticiosa. A noite está clara, não vejo as estrelas, mas sinto a sua presença. Se estivesse na minha cidade olharia o céu e sentiria as pernas fraquejarem perante algo assim. Para esses momentos gosto de usar a expressão: senti que me faltava o chão debaixo dos pés. A minha cidade, o meu quarto, a minha casa, o meu pequeno mundo precário e intranquilo fica longe, às vezes perto, quando o quero perto, longe quando estou zangada com a vida.
Amanhã será um novo dia, o trabalho conjugado com a faculdade, os pequenos labores domésticos, o fazer a cama, o abrir a janela, o pôr a roupa a lavar, a estender, e secar, tudo isso que se repete semana a semana entrecortado por momentos em que a felicidade simples surge como algo tangível, suspenso no parapeito da janela, à espera que alguém a agarre. Só que é uma felicidade simples, pouco visível, esquecida, rouca, diluída no dia a dia. Pergunto-me constantemente aonde é que vou buscar a coragem para tentar agarrá-la, eu que sofro de vertigens, eu que tenho medo das alturas, até das alturas mais pequenas, como é que vou agarrá-la, ou como é que vou amar um homem alto sem recear que ele me deixe cair?

Rivera again

Diego Rivera

sexta-feira, junho 11

Imensidão de coisas

Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo. Tantas coisas a exigirem a nossa atenção. Há tantas coisas que agitam o mundo e ainda há tantas formas de ver e sentir essas tantas coisas que teimam em falar ao mesmo tempo. Exijo silêncio, enquanto tomo café e leio o jornal exijo o silêncio e a ignorância do outro, exijo o esforço dessa terceira pessoa invisível para não me perturbar, para me ignorar enquanto tomo café e leio o jornal.

Entendes?

Sim, eu entendi isso – respondeu ele.
E eu pensei que era tão simples se Tudo se pudesse resumir a essa palavra: entendimento. Se tudo tivesse o sabor dessa palavra. Se o mundo inteiro pertencesse ao universo das coisas com sentido, universalmente aceites, colectivamente partilhadas. Mas a vida não funcionava assim, era de uma individualidade exasperante. Sempre soube que estava nua e só face à imensidão do mundo, que eu era um átomo. Sempre soube que se retirasse todas as camadas que me envolviam, sobrava apenas um corpo, tragicamente, deslumbrantemente só. Ninguém podia morrer por mim, comigo ou em mim. Suponho que da mesma forma ninguém podia viver por mim ou em mim.

segunda-feira, junho 7

As minhas mãos

Finjo que as marcas que encontro são tuas. Finjo que em determinado momento requisitas-te este mesmo livro e marcaste os versos que mais gostas. Como se esta ilusão te trouxesse de volta.

Uso-te para construir a minha memória. Fazes parte do meu itinerário imaginado. Fiz de ti aquilo que nunca foste. Amar-te-ei? Quem sabe?