quinta-feira, setembro 14

Coles Corner




















Hold back the night from us,
Cherish the light for us,
Don't let the shadows hold back the dawn.

Cold city lights glowing,
The traffic of life is flowing,
Out over the rivers and on into dark.

I'm going down town where there's music,
I'm going where voices fill the air,
Maybe there's someone waiting for me
With a smile and a flower in her hair

I'm going down town where there's people
The loneliness hangs in the air.
With no-one there real waiting for me,
No smile, no flower nowhere.

sexta-feira, setembro 8

Deli Bar

Bicicletas e outras coisas

Como começar a carta que desejo escrever há tanto tempo? Como abrir espaço em mim para que as palavras, que se reportam a objectos e sentimentos, flúem em liberdade? O que escrever? Penso nas novas músicas que ouço: ‘you leave me down to the ocean’, ‘but you still in my mind’, ‘oh mario’, nos livros que leio, no conhecimento que por vezes surge transportando memórias de outros tempos e de outras vozes. Penso naqueles momentos em que sinto o meu velho eu surgir, arreliado e atrapalhado, o mesmo rezingão de sempre, mas sempre tão benvindo. Penso nos medos e nos velhos fantasmas, no facto de os meus problemas existenciais sobreviverem em qualquer espaço, na particularidade de carregar com eles, como se carregasse a casa às costas. Penso nas perdas que sofri, no número de vezes em que me senti posta de lado, quando a vida dos outros fluiu e a minha permanece estagnada. Penso no D que se foi com tanta facilidade, cuja perda me assalta diariamente, transportando com ela um conjunto de pensamentos e medos. Penso nesse amigo que afinal tão mal conheço, que fala e escreve uma língua que definitivamente não é a minha. E no âmago de todos os meus pensamentos está esse lugar recôndito que foi a minha infância, o rosto dos meus avôs, a minha primeira bicicleta, a juventude dos meus pais, as ruas, gestos e brincadeiras que marcaram a minha meninice. No âmago de tudo está essa perda ontológica, essa natural ordem das coisas, esse tempo mítico e mágico, que certamente nunca existiu, mas sem o qual eu não consigo ser eu. Penso nessa integridade que quero tanto reencontrar e manter e alimentar, penso em ti, sem saber quem tu és.

Ainda Borges

«He felt that he had received and lost na infinite thing, something he would not be able to recuperate or even glimpse, for the machinery of the world is much too complex for the simplicity of man.»

Borges, Labirintos

Borges

The useless dawn finds me in a deserted streetcorner; I have outlived the night.

Yes, dear

Não sei se algum dia comentei contigo que tenho o hábito de escrever uma espécie de diário. Não se trata de um diário num sentido tradicional do termo, com uma chavinha e feito de páginas cor-de-rosa e azuis. É antes um ficheiro, que guardo na pasta que conserva os meus documentos mais pessoais. Comecei a escrevê-lo em 2002, quando ainda pensava em acabar a faculdade com a monografia sobre os góticos e acho que adquiri o gosto por essa escrita feita desses pequenos nadas quotidianos. Agora é uma espécie de portal para o passado, serve como testemunho de outros tempos, angustias, medos, alegrias, descobertas. É engraçado perceber que em quatro anos muitas coisas mudaram e outras permaneceram incrivelmente iguais. Relato lá a morte da Dona Maria, cujo rosto e disposição para a conversa ainda hoje conservo, e, no entanto sinto que a velhota viveu há séculos atrás. Lembro-me de lhe dizer, no auge da minha ingenuidade universitária, que o meu sonho era viajar, viver noutro país, e por isso não me assustava propriamente o futuro. Sentia que de certa forma as coisas se iam resolver. Eu ia concorrer a uma bolsa de estudos, ia fazer as malas e embarcar na minha aventura antropologia. Anos depois foi isso mesmo que aconteceu, exceptuando a bolsa de estudos. Mas falávamos com tanta ligeireza, com tanta ânsia e esperança na voz. Não me ocorria pensar que viver noutro país poderia ser uma mudança tão violenta, cujas impressibilidades nunca seria capaz de contabilizar por completo. Achava então que era uma cidadã do mundo, uma rapariga romântica, que não precisava de muito para viver e que acreditava piamente que podia construir um lar em qualquer lado. No meio de tudo isso esqueci-me de perguntar a esse ser não muito social que me habitava se estava pronto para a aventura. Porque uma coisa é tu desejares ser alguém que gosta de tal coisa e outra coisa é tu gostares dessa misteriosa coisa. Desejava ser uma pessoa que gosta de aventuras, capaz de chegar a um lugar e entrar nos meandros subterrâneos desse mesmo espaço, fazer das minhas viagens memórias inesquecíveis, mas descubro que não o sou. Habito a superficialidade das coisas, não conheço o underground de nada. E tenho a certeza que é nesse espaço obscuro demais para a palidez da minha pele que a vida realmente acontece.
Não tenho tatuagens R, na realidade nem vícios tenho. Sou uma intelectual de esquerda que nunca assinou um baixo assinado e cujo derradeiro gesto que fez para uma participação cívica mais activa foi assistir a um comício do Bloco de Esquerda, por motivos que tu sabes. Sou uma antropóloga que nunca fez trabalho de campo sério e efectivo, exceptuando aquela semana na Gralheira. Nunca tive o mínimo interesse por essa etnografia portuguesa que tanto te interessava e que deve representar o primeiro investimento numa carreira em antropologia. As histórias que aquele velhote nos contava nunca foram particularmente inspiradoras, as viagens do Mesquitela por Africa também nunca me disseram nada. Mas as aulas da Susana, da Mia, da Paula Godinho, do Pereira Bastos essas sim foram lições de vida, formaram-me enquanto pessoa, deram-me, para o bem e para o mal, uma outra visão das coisas. O Miguel foi de certa forma a cereja no topo do bolo.
A faculdade foi para mim um período de aprendizagem, por muito lamechas que isso possa parecer. Foi nesse espaço de debate e empenho, que me percebi que era uma cidadã, que existia o mundo para além de Viana e Lisboa e que esse mundo me interessava. E é disso que sinto falta e é por isso que quero regressar ao meio académico. Não quero continuar a sentir a minha vida atrofiada, a minha mente dormente, quero viver a aventura de descobrir coisas novas, pensamentos revolucionários, autores malditos, quero ver a minha secretaria, a minha nova e velha secretaria, carregada de apontamentos, rascunhos, artigos. Quero voltar a casa com uma mochila às costas, quero ser uma contadora de histórias, ter memórias e tradições para honrar. Aqui descobri a minha portuguesidade, o gosto e o amor pela minha língua, pela claridade e luminosidade dessa Viana mítica que agora me habita. Quem diria que em mim seria esse lado poético que iria sobreviver e não o lado pratico e analítico da antropologia. Sobreviveu o meu lado literário e lírico, o meu gosto pela poesia, pelo passado, por coisas que nunca existiram. E embora saiba que sem dúvida as ‘comunidades são imaginadas’ não consigo resistir à tentação de criar o meu país, de falar nele como um ser vivo, que respira e dorme em prantos de erva verde. Sobre ele me deito, tenho o céu da minha terra como horizonte e anseio por essa brisa, por essa voz rude e velha que me recorda os portos por onde passei.
Porque colhi laranjas quando era pequena, porque me sentei no muro do quintal da minha tia a saborear uma infância que passa sempre depressa de mais, porque quando criança mostrei as minhas partes intimas ao David da Maria da Luz, no galinheiro do meu avô, porque numa tarde de Inverno nevou em Darque e eu enterrei os pés na neve, porque o meu avô morreu seis meses depois da minha avó, por não querer viver num mundo sem ela, eu sei que o meu destino está inscrito noutras estrelas. E sei que esse manancial de coisas fantásticas, essa menina loira e traquinas ainda vive em mim, que ainda anseio por essa magia amorosa que sei que deve existir algures.
Um dia escrevi um conto, quando ainda andava na primária, que envolvia um rei, um reino e uma perna de galinha. Não me recordo dos detalhes. Mas esse conto revelou-me a capacidade de fazer algo de único quando pressionada. Recebi uma boa nota e os elogios da minha professora e senti o prazer que uma tarefa bem feita, como se de repente aquela ideia comum que te diz se te aplicares em algo, esse algo automaticamente sai bem, fizesse sentido.
Há vinte anos atrás o meu irmão nasceu e eu perdi os meus avós. O meu avô era maquinista, conduzia comboios, uma profissão que lhe assentava como uma luva, era bonacheirão e bebia demais. Mas devia ser uma personagem e tanto. A minha avó tinha a delicadeza daquelas mulheres que sabem esperar e que encontram conforto não na grandeza da vida, não nesses ideias de felicidade eterna que todos nós perseguimos, mas nas pequenas subtilezas. Mas na realidade que sei eu deles?
Conservo imagens difusas, lembro-me de viagens que fizemos, no tempo em que os bancos dos comboios ainda eram de madeira, lembro-me de piqueniques, de uma mesa de desmontar, branca, lembro-me do tempo em que era uma pequena princesa, num mundo governado por dragões. Lembro-me da minha casa de madeira e do cheiro dos bolos acabados de fazer. Lembro-me do tempo em que a minha mãe lavava a roupa no tanque perto do rio. Lembro-me do cheiro do sabão, do sabor da traquinice, do medo das cobras e das silvas. Lembro-me de colher amoras e de apanhar uvas, por altura da vindima. Lembro-me do cheiro do mar, das mares altas e baixas, das estrelas-do-mar que apanhava porque se tratavam de seres misteriosos. Lembro-me de tanta coisa. Lembro-me sobretudo das portas que davam para o quintal estarem sempre abertas, lembro-me da sensação de vida, de energia que transitava nesses espaços.
Perco constantemente o chão, mas sei que foram esses episódios, essas perdas e ganhos, esse encontro com a morte numa idade tão tenra que me formaram.
Volto a escrever, compro o jornal, aprecio novamente o café, aprendo a gostar de ‘custard’ e de algumas especiarias indianas, palavras como ‘love’ e ‘sweaty’ saem da minha boca com facilidade. Falo com rapazes bonitos sem corar, como se fosse algo que faço desde de sempre. Aceito as formas redondas e maternais do meu corpo e começo a aceitar a ideia que existe beleza em mim. Conservo o passado rente ao coração e sinto-me grande e cheia, como se de repente fizesse parte da terra, de alguma coisa viva e imortal.
E não deixo de perguntar aonde estarei daqui a um ano.

News from a distant place...

Não sei que horas são. Estou a ouvir o Sinatra, penso no Calvin, penso no mundo que podia existir se o Calvin realmente existisse, penso nos desenhos do Sérgio, penso no urso castanho claro com um ramo de flores que ele decidiu que queria como presente de boas vindas. Penso no dia de amanhã, no desejo de ter Internet novamente, no desejo de receber do D um e-mail, um telefonema, um postal, um indício de preocupação. Nunca sabemos o quanto os outros são importantes para nós, excepto quando se vão. Sinto um misto de resignação e decepção quando penso no silêncio dele. Resignação porque no fundo sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, isso ia acontecer. E decepção misturada com tristeza porque apesar de tudo ele faz-me falta, o ser loira faz-me falta. Chego à conclusão que nunca cheguei a tocar ninguém, nunca influenciei ou agarrei ninguém nem mesmo com a minha amizade. Decepção misturada com um sentimento de inveja porque sei que ele está melhor que eu e porque tomo consciência que na assimetria que foi a nossa relação eu sempre fui a parte mais fraca, a menos capaz de funcionar neste mundo, a menos sofisticada, a mais necessitada de atenção. Carrego com isso no coração, com esta mágoa por um silêncio que não compreendo, que não consigo justificar, que me corrói a alma e me enfraquece os membros. Compreendo que não sou forte, R; vivo no limiar nas coisas, imersa em estados de humor extremos e corrosivos. Sou uma criança com vinte e seis anos de idade, amedrontada com tudo aquilo que ainda vai acontecer, com todas as perdas que ainda vou viver, com a ideia que tenho sangue a correr nas veias, e que é o medo e não a paixão ou a ousadia o motor que governa a minha vida.

Pedi à minha tia para me enviar arroz doce, pedi à minha mãe para me comprar café delta e à minha outra tia para me enviar o jornal e a Premiere. Receber correspondência continua a ser um deleite. Chegar a casa e receber um pouco do lar num pacote dos correios é uma satisfação. E quando se trata de livros é um delírio. Sei que estou aonde devo estar e sei que mudei a níveis que nem eu mesma percebo por completo. Mas o estar aqui, o reconhecimento do meu rosto neste país, exigiu-me o sangue e a alma. Sorrio, não só às pessoas que já fazem parte do meu dia-a-dia e que na sua imensa generosidade me perguntam sempre como estou, se estou bem, e me tocam e me abraçam, mas também sorrio interiormente na esperança que esse sorriso tímido me devolva a esperança, me cure a alma e me rejuvenesça por dentro. Uso frequentemente a expressão ‘yes, love’, como uma forma de quebrar o gelo, faço e digo coisas que há um ano seriam extravagantes e impossíveis. Já não sou uma miúda ou adolescente, antes sou perspectivada como uma adulta e resolução de todas as burocracias inerentes à minha estadia aqui depende apenas de mim.