quarta-feira, outubro 26

To Rachel [antes das férias]

Tenho de fazer uma data de coisas, mas não me apetece fazer nada, não me apetecer mexer um único músculo, como se toda a minha vida assentasse num frágil baralho de cartas que eu ergui entre mentiras piedosas e fantasias. Fantasio com uma vida melhor, sabendo que isso implica um renascimento, fantasio com um rapaz de olhos cinzentos e cabelo preto, levemente ondulado, fantasio com um corpo sereno e esguio, capaz de mexer com a imaginação de alguém, fantasio com uma mente sagaz, capaz de discutir sem se atrapalhar, fantasio com uma alma despida de temores, fantasio com uma vida assente na coragem e numa generosidade que não possuo. Ás vezes dou por mim tão imersa em mim mesma que o próprio acto de falar banalidades me é doloroso. E sinto-me tão sozinha, tão atrapalhadamente sozinha, incapaz de agir num mundo que não conheço, incapaz de viver uma idade que sinto que não possuo. Como se eu fosse uma peça de roupa estendida num corda de secar, presa por umas molas. Como se toda a minha existência se reduzisse a uma maré infinita de contradições: sou aquilo que não sou, quero aquilo que não quero. «Amor é um fogo que arde sem se ver»... Imagino-me sentada num comboio, olhando a janela, imagino uma aura de solicitude e de gratificação à minha volta, imagino-me mergulhada nos meus pensamentos, enquanto o comboio percorre quilómetros de paisagem. Imagino-me assim, como uma aventureira sossegada, que gosta de beber café preto e ler o jornal, que prefere o comboio ao carro, que gosta de pequenas cidades e pequenos segredos, que gosta de fotografias a preto e branco. Penso nessa pessoa que é uma mulher, imagino que é uma pessoa que sabe falar de coisas interessantes sem gaguejar, que sabe sorrir com delicadeza, que sabe dizer sim e não com desenvoltura. Eu quero ser essa pessoa, serena e confiante.

Imagino que algures em mim ainda sobrevive alguma coisa de especial, um pequeno pedaço de céu, à espera que alguém o devolva à luz do dia. Queria acreditar que a vulnerabilidade que sinto viva vai encontrar eco no coração de alguém.

Descubro que essa rudeza quase corporal que detecto nos meus gestos, essa agressividade que surge dentro de mim quando os momentos se tornam sentimentais de mais, me faz perder essa espécie de delicadeza feminina, como se eu fosse um pedaço de pedra, incapaz de exprimir afectos. Nisso saio à minha mãe, para quem uma prova de amor é uma pancada no ombro e um gracejo. Gostava de ser um modelo de virtudes e graça femininas, uma petit coquete que sabe fazer bencinho.

Sinto a tua falta, Raquel. Sinto falta daqueles dias em que passaste em Lisboa, na minha casa e acordavas cedo, sinto falta daquele apartamento que nunca foi meu, sinto falta de falar com alguém interessante, sinto falta dos meus vinte anos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Loira, tu podes não ser aquele personagem de romance, simultaneamente aventureira e sofisticada, activa e inteligente, mas tens a grande e imensamente rara capacidade de auto-análise e uma muito subvalorizada vontade de auto-superação.
Podes não ter as qualidades que, aos teus olhos, fariam de ti a mulher perfeita, mas tens outras qualidades que te tornam tão especial...

Enoch