domingo, janeiro 21

Carta à Raquel

Estranhas o facto de eu ter o telemóvel sempre ligado, estranhas o facto de lhe ter atribuído a função de despertador. Na verdade eu não tenho uma relação assim tão saudável com esse instrumento do capitalismo moderno. O meu embora esteja ligado está permanentemente no silêncio. Causa-me ansiedade, frustação, birra.

Estou presa no momento, incapacitada de qualquer espécie de expressão. As palavras são casulos, fechadas em si mesma, à espera desse momento de liberdade que vem com o nascimento. Também eu gostaria de renascer, de sentir dentro de mim algum vestígio de sensatez, de originalidade, de verdade, de coerência interna. Queria sentir que alguma coisa tem ordem, estrutura, mas sinto apenas essa sensação de ter uma personalidade gasta, como se ela fosse um pedaço de roupa corroída por constantes lavagens. Então falta-me aquele eco de ferocidade infantil, aquele olhar transparente, a leveza que a honestidade traz. E fico a pensar se isso é apenas um defeito meu, ou se todos os outros também sentem o fardo dos anos, o acumular do pó, o peso dos truques e das mentiras e das desculpas que fazem parte do modo como vivemos a vida. Sinto falta de ter o coração vazio. Sinto falta de percorrer as ruas de Viana e respirar lentamente, deixar o ar entrar e sair dos meus pulmões com suavidade e sentir nesse gesto, nos segundos que demora a concretização desse gesto que tudo está bem no mundo, que a vida é mesmo uma canção do Jorge Palma, ou uma conversa entre duas amigas pelo telefone.

Habita-me um conjunto de potenciais de textos, o relatório das viagens ao interior da minha alma, as mil e uma observações que faço diariamente. Falta-me relatar tudo isso, com destreza, sagazmente, contar os episódios antropológicos a que assisto quotidianamente, desconstruir o mundo outra vez, e recuperar a minha sanidade. Hoje perguntaram-me a origem dos meus estados depressivos, o porquê da tristeza e do descontentamento. O facto de ser europeia, classe média, viver num país dito civilizado, não passar fome e não ter um passado problemático seriam condições sine quo non para a felicidade permanente e para um estado de gratidão perpétuo. Como explicar que a tristeza que me habita é um traço de personalidade, que eu até gosto dela? Existe em mim, como a teimosia existe nos outros. É em certos momentos contextual, e nesse aspecto eu sei que a mudança só depende de mim. Arranjar um melhor emprego, arregaçar as mangas e começar a viver só depende de mim. O sentimento de pena surge quando realizo que não tenho energia para isso. É essa inércia que gostava de saber combater, esse medo ontológico que gostava de saber enfrentar. Como explicar sem que isso soe a auto piedade ou infantilidade que eu sou um ser humano a três dimensões?

1 comentário:

enoch disse...

Devias ter sido contemporânea a Goethe, ou Dickens... Estarias como um peixinho na água. :)

Beijos!