domingo, julho 4

Visceral

Qualquer viagem começa com uma pergunta. É pela ânsia de encontrar o que está para além do horizonte da nossa medíocre vista que a procura do conhecimento tende a começar. É um rumor suave no início, denso com a passagem do tempo que sentimos dentro de nós, uma espécie de intranquilidade que nos impele a percorrer o mundo de pernas para baixo. Tenho vivido continuamente com essa intranquilidade no espírito, com esse sentimento de antecipação de acontecimentos, normalmente catastróficos. A culpa é da modernidade, é deste mundo moderno feito de dúvidas e labirintos. Isso é o que me parece. E eu sou crente no modernismo. Mas não me interessa saber que nada existe, que essa coisa chamada realidade não existe, não me interessa saber que tudo é virtual, que entre o eu e o outro existe um espaço de distância que nunca será anulado. Existe a minha realidade. A literatura é então um exercício através do qual tento dar a minha realidade a mais alguém. Tento encurtar o espaço de distância que vai de mim até ao outro, como diz Sá Carneiro. Assim tudo é possível. Assim faz sentido dizer que a literatura transforma o impossível em potencialidade. Porque a questão de saber se é real, ou não, se é importante ou mera neurose, é uma questão secundária, porque o texto literário seja ele prosa ou poesia, é um texto resultante da plasticidade dessas neuroses, dessas dores de alma, desses conflitos existenciais É nesse inconsciente delirante que me afundo, que renasço para a vida. Em literatura tudo é possível, porque também tudo é permitido, porque em certo sentido podemos apresentar um rosto limpo, não perfeito, mas simplesmente o rosto que temos, por detrás das máscaras. Enquanto na vida sou necessariamente uma personagem, na escrita posso ser o narrador, um figurante, qualquer coisa de estranho. Para além da fidelidade necessária a mim mesma posso ser qualquer outra coisa. A minha liberdade criativa só presta contas a essa fidelidade, que autentica o meu trabalho, que o torna único. Porque a escrita tem de remontar a algum lado, tem de pertencer a alguma origem, sinto que a minha ainda tenta encontrar uma voz, a sua única voz possível.

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