sábado, julho 24

Stupid Kids

A primeira vez que fui ao cinema tinha uns dez anos. Lembro-me que fui ver La Bamba e foi uma experiência reveladora, pois revelou-me entre outras coisas uma espécie de essência cinematográfica, que é a relação que o cinema estabelece entre realidade e ficção. Aos meus olhos infantis a morte foi algo de real, e não entendi a noção de filme baseado em factos verídicos. Persegui essa compreensão durante muito tempo, até que for fim convenci-me que aquela morte e aquelas pessoas não existiam naquele plano. Chegava a ter diálogos comigo mesma, numa tentativa de devolver a lógica que tinha perdido naquele espaço de transgressão. É claro que as minhas tias me tentaram explicar que tudo aquilo era ficção, que aquele actor provavelmente ia entrar noutros filmes, mas não foi suficiente. Tinha sentido a presença da morte, do destino, da inexorabilidade do destino e isso perturbava-me incrivelmente. Essas são as experiências que retemos na nossa memória. Já perdi a conta ao número de vezes que fui ao cinema, mas sempre que me perguntam qual foi o primeiro filme que vi no grande ecrã eu sei exactamente o que responder.
Ir ao cinema continua a ser uma experiência que me dá imenso prazer, pelas particularidades que envolve e sobretudo porque me faz sentir que por duas horas eu estou numa espécie de quinta dimensão, mergulhada visualmente e acusticamente num outro mundo. É uma espécie de simbiose que se estabelece entre nós e o filme, sobretudo quando estamos a ver um filme que nos transmite algo. Não vou ao cinema para comer pipocas, para namorar, para atirar piropos em cada cena quente, vou para mergulhar no escuro, para me afundar na cadeira, para rir e chorar, para sentir na pele a volúpia de certos diálogos, de certos movimentos, de certas cenas. Às vezes é uma experiência de puro prazer. O Kill Bill, Volume 2 é um exemplo dessa sensação.
Foi aos dez anos que entrei nesse mundo em que a imaginação se torna plástica, ganha movimentos, sons, uma história, uma galeria de personagens e frases que ficam marcadas na nossa memória. Agora vejo miúdos de quatro anos a irem ao cinema e fico a pensar que os tempos mudaram de facto. Nos tempos que correm temos o cinema infantil e o cinema para adultos, sendo que a divisão entre os dois é cada vez mais ténue. Vemos adultos a entrarem no espaço das crianças e infelizmente vemos também crianças a entrarem no universo dos adultos. E aqui qualquer coisa falha. Apetece-me gritar que o Homem Aranha embora seja um filme baseado num comic book, embora seja sobre uma personagem que a maioria das crianças identifica, e acha graça não é um filme para crianças, e muito menos para crianças de quatro e cinco anos. Choca-me ver pais a levarem estes miúdos a ver este filme, como se fossem ver o Nemo ou o Shrek. Creio não ser conservadorismo da minha parte, mas apenas bom senso. Uma criança não aguenta duas horas de um filme que não percebe, por muito que a mamã faça questão em o traduzir para que o filho e os outros a ouçam. O filme é violento no sentido em que é dinâmico do ponto de vista visual e sonoro. A imagem dos quatro tentáculos a saírem das costas do vilão é aterradora e deve provocar pesadelos em qualquer miúdo. O próprio ambiente do cinema é a meu ver intimidante. O som alto, a velocidade com que as cenas de acção decorrem, o escuro da sala, tudo isso aos olhos de uma criança de quatro anos é chocante.
E isto sem falar em como é desagradável para qualquer pessoa adulta que vá ver o filme e de repente se vê obrigada a aguentar com a histeria da criança, com a estupidez da mãe, e com o barulho e as constantes interrupções que daí resultam. Chego a pensar que provavelmente eu sou exigente de mais, e querer ver um filme que por sinal é muito bom, em silêncio, sossegada para me poder fundir nele, é concerteza um capricho da minha parte. Gostei realmente do Homem Aranha. Gostei das escolhas do realizador, assim como da densidade existencial das próprias personagens, gostei dos olhos do Tobey Maguire e do final escolhido. Mas pela primeira vez senti uma espécie de claustrofobia naquela sala barulhenta e teenager. E sai de lá a pensar que cada vez mais as pessoas vão ao cinema por ir, porque é uma forma de passar o tempo, sem fazerem um esforço para captar o filme na sua totalidade, para detectar nuances, para entrar dentro do filme. E isso entristece-me. Vi o filme como a minha atenção dispersa, e fiquei com a sensação de ter visto apenas metade do filme. Por isso resta-me perguntar: quando compro um bilhete para o cinema estou a comprar o quê? Tenho direito exactamente ao quê?

Semanas depois fui ver o Harry Potter, convencidíssima que aí sim ia apanhar com todos os miúdos das redondezas. No fim conclui que as crianças vão ver o filme porque querem, porque gostam, por acham piada ao Harry e aos amigos. Entram no filme, apreciam as particularidades. Claro que não resistem a trocar impressões com o amigo do lado, mas é o universo delas, é o espaço delas. Existem outros que vão mesmo só para chatear, revelando uma incrível falta de respeito e educação pelos outros, pelo interesse dos outros, pelo espaço dos outros, perseguindo aquilo que devem julgar ser a irreverência. Desde os tradicionais piropos em alta voz, passando pelo atirar de latas de Coca-Cola uns aos outros, atendendo telemóveis sem o mínimo pudor, tudo acontece naquele cinema. Aqui em Viana a silly season é o ano todo, sem interrupções. Nunca me senti tão insultada na minha individualidade como me senti nestas duas ocasiões. Mais uma e desisto de ir ao cinema, porque entre as crianças barulhentas e os adolescentes idiotas venha o diabo e escolha. Que cretinos são os miúdos de agora, tão cientes que a falta de educação, respeito e atenção não são punidos.

Sem comentários: