sexta-feira, setembro 8

Yes, dear

Não sei se algum dia comentei contigo que tenho o hábito de escrever uma espécie de diário. Não se trata de um diário num sentido tradicional do termo, com uma chavinha e feito de páginas cor-de-rosa e azuis. É antes um ficheiro, que guardo na pasta que conserva os meus documentos mais pessoais. Comecei a escrevê-lo em 2002, quando ainda pensava em acabar a faculdade com a monografia sobre os góticos e acho que adquiri o gosto por essa escrita feita desses pequenos nadas quotidianos. Agora é uma espécie de portal para o passado, serve como testemunho de outros tempos, angustias, medos, alegrias, descobertas. É engraçado perceber que em quatro anos muitas coisas mudaram e outras permaneceram incrivelmente iguais. Relato lá a morte da Dona Maria, cujo rosto e disposição para a conversa ainda hoje conservo, e, no entanto sinto que a velhota viveu há séculos atrás. Lembro-me de lhe dizer, no auge da minha ingenuidade universitária, que o meu sonho era viajar, viver noutro país, e por isso não me assustava propriamente o futuro. Sentia que de certa forma as coisas se iam resolver. Eu ia concorrer a uma bolsa de estudos, ia fazer as malas e embarcar na minha aventura antropologia. Anos depois foi isso mesmo que aconteceu, exceptuando a bolsa de estudos. Mas falávamos com tanta ligeireza, com tanta ânsia e esperança na voz. Não me ocorria pensar que viver noutro país poderia ser uma mudança tão violenta, cujas impressibilidades nunca seria capaz de contabilizar por completo. Achava então que era uma cidadã do mundo, uma rapariga romântica, que não precisava de muito para viver e que acreditava piamente que podia construir um lar em qualquer lado. No meio de tudo isso esqueci-me de perguntar a esse ser não muito social que me habitava se estava pronto para a aventura. Porque uma coisa é tu desejares ser alguém que gosta de tal coisa e outra coisa é tu gostares dessa misteriosa coisa. Desejava ser uma pessoa que gosta de aventuras, capaz de chegar a um lugar e entrar nos meandros subterrâneos desse mesmo espaço, fazer das minhas viagens memórias inesquecíveis, mas descubro que não o sou. Habito a superficialidade das coisas, não conheço o underground de nada. E tenho a certeza que é nesse espaço obscuro demais para a palidez da minha pele que a vida realmente acontece.
Não tenho tatuagens R, na realidade nem vícios tenho. Sou uma intelectual de esquerda que nunca assinou um baixo assinado e cujo derradeiro gesto que fez para uma participação cívica mais activa foi assistir a um comício do Bloco de Esquerda, por motivos que tu sabes. Sou uma antropóloga que nunca fez trabalho de campo sério e efectivo, exceptuando aquela semana na Gralheira. Nunca tive o mínimo interesse por essa etnografia portuguesa que tanto te interessava e que deve representar o primeiro investimento numa carreira em antropologia. As histórias que aquele velhote nos contava nunca foram particularmente inspiradoras, as viagens do Mesquitela por Africa também nunca me disseram nada. Mas as aulas da Susana, da Mia, da Paula Godinho, do Pereira Bastos essas sim foram lições de vida, formaram-me enquanto pessoa, deram-me, para o bem e para o mal, uma outra visão das coisas. O Miguel foi de certa forma a cereja no topo do bolo.
A faculdade foi para mim um período de aprendizagem, por muito lamechas que isso possa parecer. Foi nesse espaço de debate e empenho, que me percebi que era uma cidadã, que existia o mundo para além de Viana e Lisboa e que esse mundo me interessava. E é disso que sinto falta e é por isso que quero regressar ao meio académico. Não quero continuar a sentir a minha vida atrofiada, a minha mente dormente, quero viver a aventura de descobrir coisas novas, pensamentos revolucionários, autores malditos, quero ver a minha secretaria, a minha nova e velha secretaria, carregada de apontamentos, rascunhos, artigos. Quero voltar a casa com uma mochila às costas, quero ser uma contadora de histórias, ter memórias e tradições para honrar. Aqui descobri a minha portuguesidade, o gosto e o amor pela minha língua, pela claridade e luminosidade dessa Viana mítica que agora me habita. Quem diria que em mim seria esse lado poético que iria sobreviver e não o lado pratico e analítico da antropologia. Sobreviveu o meu lado literário e lírico, o meu gosto pela poesia, pelo passado, por coisas que nunca existiram. E embora saiba que sem dúvida as ‘comunidades são imaginadas’ não consigo resistir à tentação de criar o meu país, de falar nele como um ser vivo, que respira e dorme em prantos de erva verde. Sobre ele me deito, tenho o céu da minha terra como horizonte e anseio por essa brisa, por essa voz rude e velha que me recorda os portos por onde passei.
Porque colhi laranjas quando era pequena, porque me sentei no muro do quintal da minha tia a saborear uma infância que passa sempre depressa de mais, porque quando criança mostrei as minhas partes intimas ao David da Maria da Luz, no galinheiro do meu avô, porque numa tarde de Inverno nevou em Darque e eu enterrei os pés na neve, porque o meu avô morreu seis meses depois da minha avó, por não querer viver num mundo sem ela, eu sei que o meu destino está inscrito noutras estrelas. E sei que esse manancial de coisas fantásticas, essa menina loira e traquinas ainda vive em mim, que ainda anseio por essa magia amorosa que sei que deve existir algures.
Um dia escrevi um conto, quando ainda andava na primária, que envolvia um rei, um reino e uma perna de galinha. Não me recordo dos detalhes. Mas esse conto revelou-me a capacidade de fazer algo de único quando pressionada. Recebi uma boa nota e os elogios da minha professora e senti o prazer que uma tarefa bem feita, como se de repente aquela ideia comum que te diz se te aplicares em algo, esse algo automaticamente sai bem, fizesse sentido.
Há vinte anos atrás o meu irmão nasceu e eu perdi os meus avós. O meu avô era maquinista, conduzia comboios, uma profissão que lhe assentava como uma luva, era bonacheirão e bebia demais. Mas devia ser uma personagem e tanto. A minha avó tinha a delicadeza daquelas mulheres que sabem esperar e que encontram conforto não na grandeza da vida, não nesses ideias de felicidade eterna que todos nós perseguimos, mas nas pequenas subtilezas. Mas na realidade que sei eu deles?
Conservo imagens difusas, lembro-me de viagens que fizemos, no tempo em que os bancos dos comboios ainda eram de madeira, lembro-me de piqueniques, de uma mesa de desmontar, branca, lembro-me do tempo em que era uma pequena princesa, num mundo governado por dragões. Lembro-me da minha casa de madeira e do cheiro dos bolos acabados de fazer. Lembro-me do tempo em que a minha mãe lavava a roupa no tanque perto do rio. Lembro-me do cheiro do sabão, do sabor da traquinice, do medo das cobras e das silvas. Lembro-me de colher amoras e de apanhar uvas, por altura da vindima. Lembro-me do cheiro do mar, das mares altas e baixas, das estrelas-do-mar que apanhava porque se tratavam de seres misteriosos. Lembro-me de tanta coisa. Lembro-me sobretudo das portas que davam para o quintal estarem sempre abertas, lembro-me da sensação de vida, de energia que transitava nesses espaços.
Perco constantemente o chão, mas sei que foram esses episódios, essas perdas e ganhos, esse encontro com a morte numa idade tão tenra que me formaram.
Volto a escrever, compro o jornal, aprecio novamente o café, aprendo a gostar de ‘custard’ e de algumas especiarias indianas, palavras como ‘love’ e ‘sweaty’ saem da minha boca com facilidade. Falo com rapazes bonitos sem corar, como se fosse algo que faço desde de sempre. Aceito as formas redondas e maternais do meu corpo e começo a aceitar a ideia que existe beleza em mim. Conservo o passado rente ao coração e sinto-me grande e cheia, como se de repente fizesse parte da terra, de alguma coisa viva e imortal.
E não deixo de perguntar aonde estarei daqui a um ano.

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