sexta-feira, setembro 8

Bicicletas e outras coisas

Como começar a carta que desejo escrever há tanto tempo? Como abrir espaço em mim para que as palavras, que se reportam a objectos e sentimentos, flúem em liberdade? O que escrever? Penso nas novas músicas que ouço: ‘you leave me down to the ocean’, ‘but you still in my mind’, ‘oh mario’, nos livros que leio, no conhecimento que por vezes surge transportando memórias de outros tempos e de outras vozes. Penso naqueles momentos em que sinto o meu velho eu surgir, arreliado e atrapalhado, o mesmo rezingão de sempre, mas sempre tão benvindo. Penso nos medos e nos velhos fantasmas, no facto de os meus problemas existenciais sobreviverem em qualquer espaço, na particularidade de carregar com eles, como se carregasse a casa às costas. Penso nas perdas que sofri, no número de vezes em que me senti posta de lado, quando a vida dos outros fluiu e a minha permanece estagnada. Penso no D que se foi com tanta facilidade, cuja perda me assalta diariamente, transportando com ela um conjunto de pensamentos e medos. Penso nesse amigo que afinal tão mal conheço, que fala e escreve uma língua que definitivamente não é a minha. E no âmago de todos os meus pensamentos está esse lugar recôndito que foi a minha infância, o rosto dos meus avôs, a minha primeira bicicleta, a juventude dos meus pais, as ruas, gestos e brincadeiras que marcaram a minha meninice. No âmago de tudo está essa perda ontológica, essa natural ordem das coisas, esse tempo mítico e mágico, que certamente nunca existiu, mas sem o qual eu não consigo ser eu. Penso nessa integridade que quero tanto reencontrar e manter e alimentar, penso em ti, sem saber quem tu és.

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